CRÍTICA

Lisboa Oriental

Por Luís Santiago Baptista
Arquitecto, Curador
e Paula Melâneo
Arquitecta, Editora
  
Zona oriental de Lisboa com a Manutenção Militar/ Hub Criativo do Beato em primeiro plano
© 1825 Studio
Zona oriental de Lisboa com a Manutenção Militar/ Hub Criativo do Beato em primeiro plano
© 1825 Studio

 

 

Limitada pelo rio Tejo a Sul, Lisboa cresceu essencialmente para Ocidente, ao longo da linha de costa, e para Norte, com o Plano das Avenidas Novas. Nestes quadrantes de expansão da urbe construiu-se, ao longo dos séculos, a cidade formal, aristocrática e burguesa, aquela que verdadeiramente se planeou e foi desenhando. Mas como se desenvolveu a parte oriental da cidade mais interior no estuário do Tejo?

Toda a zona oriental da cidade, compreendendo Xabregas, Grilo, Beato e Marvila, sempre foi negligenciada em relação à expansão ocidental e para Norte. Área mais popular da cidade, onde as indústrias preferencialmente se localizaram e onde o operariado encontrou residência, essa condição de relativa exclusão manifesta-se logo desde a sua origem, com a Mouraria, extra-muros em relação à Muralha Fernandina. Mais tarde, no desenvolvimento dos novos eixos da cidade para Norte, a abertura da Almirante Reis para Oriente não deixaria de contrastar com o requinte do Plano das Avenidas Novas. Apesar do seu atravessar pela Alameda D. Afonso Henriques, e do seu culminar na distinta Praça do Areeiro, não deixa de desembocar, para Nascente, no bairro social das Olaias. A industrialização, tardia em Portugal, encontra na área oriental da cidade lugar de localização das novas indústrias e infra-estruturas portuárias. A população que as alimenta habita nos bairros históricos – sendo a Graça um dos lugares onde se encontram os mais relevantes exemplos de pátios e vilas operárias – ou nas periferias urbanas costeiras ou interiores. Se os bairros históricos se densificam na tentativa de dar resposta aos problemas habitacionais das classes mais desfavorecidas, todo um novo tecido de natureza mais informal vai ocupando a faixa costeira, seja através da via interior marcada por diversos conventos preexistentes que estruturam o tecido, seja através da nova via exterior que serve toda a nova área industrial e portuária, com os seus novos terraplenos e docas.

Mas esta zona oriental de Lisboa, e a sua evolução não planeada, seria palco de algumas das mais relevantes experiências urbanísticas do século XX. Um facto fundamental determinou que assim fosse: a política de expropriações de Duarte Pacheco, do final dos anos 1930 e início dos anos 1940, no âmbito da reestruturação de Lisboa do Plano De Gröer, libertando na zona oriental da cidade um vasto território, então não urbanizado mas com algumas presenças rurais. É sobre este território tornado público que o regime do Estado Novo implantará os seus modelos urbanos de habitação económica, bem como os sucessivos modelos urbanos modernos que se seguiram. Na sua condição menor, este foi o território de um permanente laboratório de experimentação urbanística e arquitectónica, e consequente implementação sucessiva de novos conceitos urbanos e ideias de cidade que respondessem aos prementes problemas habitacionais da capital.

Os grandes bairros económicos do Estado Novo dos anos 1940 marcam esta zona com a Madredeus e a Encarnação. Apresentam-se como aldeias autónomas na periferia da cidade, desenhadas enquanto estruturas urbanas centralizadas com amplos espaços livres e compostas de casas geminadas individuais, hierarquizadas no plano pelos seus diversos tamanhos e equipamentos, como igreja, quartel de bombeiros, escola primária e mercado, marcando os seus pontos principais. A ideologia ruralista do Estado Novo encontra aqui a sua materialização plena.

Com o enfraquecimento temporário do regime após a 2.ª Grande Guerra e a tomada de posição dos arquitectos modernos no Congresso de 1948, os seguintes planos de habitação social, dos Olivais Norte, de meados nos anos 1950, e dos Olivais Sul, no início dos anos 1960, marcam propostas urbanas influenciadas pela Carta de Atenas e pela arquitectura moderna internacional. Promovem-se experiências de edifícios de habitação colectiva isolados, de diversas tipologias e dimensões, distribuídos num espaço verde contínuo, afastando-se da estrutura de quarteirões da cidade tradicional. Enquanto nos Olivais Norte os edifícios se organizam como edifícios autónomos, seja em torre ou em banda, tal como proposto na célebre Carta de Atenas, embora com uma ideia de centralidade dada pela via circular estruturante e pela diminuição da cércea dos edifícios do centro para os limites do plano; nos Olivais Sul, de maior dimensão, assiste-se já a uma tentativa dos edifícios hierarquizarem, de modo livre e aberto, o espaço público, com forte influência das ideias de unidade de vizinhança e das propostas modernas das new towns inglesas. Em ambos, a estrutura urbana organiza-se através da localização dos equipamentos escolares pelas diferentes células e centros comerciais que servem todo o plano. Enquanto explode a expansão desqualificada e genérica da área metropolitana de Lisboa de promoção privada, os planos dos Olivais apresentam-se como importantes experiências públicas qualificadas, mas no final incapazes de responder ao crescimento exponencial da urbanização nos limites da cidade. No início dos anos 1960 continua a experimentação de novos modelos urbanos com o Plano de Chelas. Numa área ainda maior, Chelas apresenta diversos pólos urbanos procurando restabelecer, agora numa concepção mega-estrutural, a relação entre o edificado, as vias e o espaço público, numa reavaliação dos modelos tradicionais. 

A evolução deste conjuntos urbanos modernos terá diferentes destinos. Se os Olivais, fruto da sua ocupação ter incluído a classe média, se foi consolidando com o tempo, Chelas, mais directamente vinculado às classes mais desfavorecidas, padeceu de estigmatização desde o seu início, encontrando agora processos de regeneração urbana que prometem requalificar a vida nesta zona da cidade.

Nos anos 1990 a zona oriental de Lisboa seria palco de um plano que surge em condições absolutamente excepcionais. Num território ocupado por infra-estruturas portuárias devolutas e complexos industriais abandonados, a realização da Expo’98 é assumida como uma possibilidade única de reabilitar a zona oriental da cidade com um novo pólo urbano, aproveitando as infra-estruturas e principais equipamentos construídos para a exposição. Se a nova travessia do Tejo (Ponte Vasco da Gama) e a Gare do Oriente lhe conferem uma nova acessibilidade e centralidade na cidade, a invejável rede de edifícios públicos e a extraordinária dimensão de espaços públicos dão-lhe muito boas condições vivenciais, apesar da natureza genérica de promoção privada de grande parte do seu parque habitacional. Ainda que existissem dúvidas iniciais sobre a exequibilidade deste ambicioso projecto, a verdade é que a cidade viria a ganhar uma nova área urbana com uma identidade própria e relativa autonomia, embora mantendo por cumprir as promessas de estruturação física e social com todo o território envolvente.

LSB

 

 

 

Lisboa pós-industrial – uma nova cidade a Oriente

 

É um território fragmentado ou até pulverizado, no espaço e no tempo, carente de articulações, de relações, de proximidades, de densidade.Jorge Gaspar 1

 

O território oriental lisboeta apresenta-se como um conjunto de muitos fragmentos, vários pólos espalhados e desarticulados, onde as ligações são deficientes ou inexistentes: zonas rurais de hortas e talhões; espaços vazios; zonas habitacionais degradadas e informais, outras já mais consolidadas, de bairros sociais ou de custos controlados, outras ainda de carácter mais experimental no seu planeamento, mas na sua maioria extremamente carenciadas; zonas industriais meramente funcionais, em grande parte desafectadas da sua produção; espaços públicos não planeados e ineficazes na conexão de bairros, funções e espacialidades tão diferentes, onde o atravessamento por duas linhas de comboio (que se unem em Braço de Prata) vem ainda dificultar essas relações. 

Foi sem dúvida a Expo’98, e toda a dinâmica em seu redor, que teve um importante papel em recolocar no mapa de Lisboa toda a área industrial e portuária oriental, concentrada entre o rio Tejo e as linhas do caminho-de-ferro, completamente desconhecida pelos que não estavam relacionados com as actividades que servia. Numa pequena escala, esta zona junto do rio mostrou-se apetecível para artistas, galerias de arte, arquitectos, agências de publicidade e produtoras (vídeo, cinema, eventos, etc.), que aí descobriram amplos espaços vazios, a preços bastante competitivos, para se instalarem. 

Nos últimos anos, tornou-se também numa alternativa possível àqueles que se têm visto afastados do centro da capital pelo aumento dos bens imobiliários ou por processos de despejo e esvaziamento em favor do alojamento turístico, temporário ou de luxo. Com os valores de m2 mais baixos de Lisboa 2 (freguesias de Marvila e Beato) e por vezes até incluindo uma vista para o Tejo, esta zona tornou-se uma opção, quer para habitação quer para local de trabalho. As estratégias de ocupação são maioritariamente pouco complexas, procurando-se estruturas sólidas e incidindo os trabalhos ao nível das infra-estruturas, tirando o máximo partido das características espaciais e arquitectónicas do património industrial original. 

Torna-se assim importante olhar a génese das movimentações que têm ocorrido, fazendo um percurso cronológico que nos leva a traçar uma sucessão de planos e acções de influência sobre esta zona. As várias intervenções, públicas e privadas, que se têm realizado marcam o território desindustrializado social, económica e urbanisticamente, o que nos leva a (re)conhecer uma nova cidade a Oriente.

 

Lisboa Oriental, Lisboa industrial 

Favorecida pela sua situação ribeirinha e transporte fluvial, a zona oriental de Lisboa foi o espaço eleito para instalação de conventos e quintas nobres. Afastada da azáfama do centro urbano da cidade, com amplos espaços a ocupar e área portuária de suporte, a zona atraiu a actividade industrial. A instalação da linha férrea do Norte, cujo primeiro troço foi inaugurado em 1856, veio ainda melhorar o escoamento das produções. 

Com a extinção das ordens religiosas, alguns dos espaços que lhes pertenciam ficaram disponíveis para serem ocupados pela indústria, como o convento franciscano de Santa Maria de Jesus de Xabregas que serviu a Fiação de Tecidos de Algodão Lisbonense e depois a Fábrica de Tabacos Lisbonense (mais tarde Companhia Portuguesa de Tabacos) ou o Palácio e Quinta da Mitra, que serviram a Fábrica de Cortiça e também a Fábrica Seixas de metalurgia e fundição. 

Ao longo dos séculos XIX e XX foram-se também construindo novos edifícios específicos, instalando-se nessa zona importantes fábricas de transformação de matérias-primas, como as de fósforos, borracha, sabão, curtume, trefilaria, açúcar ou massas até à indústria pesada de fabricação de gás e petroquímica e também grandes armazéns de produtos – o que ainda hoje se reflecte na toponímia local.

A malha urbana foi inicialmente moldada pelas estruturas preexistentes (os conventos e as quintas), sem grande planeamento, e o crescimento foi linear, ao longo da faixa ribeirinha – segundo o eixo que os aterros no rio Tejo vieram enfatizar (e servir) – e da linha do caminho-de-ferro.

Mas a indústria trouxe também a desvalorização urbana, o espaço idílico da nobreza e burguesia transformou-se: o ambiente ficou cheio de ruído, fumos e poluição, fazendo com que esses espaços nobres fossem sendo abandonados ou comprados pelos donos das indústrias. Uma nova população de operários, na sua maioria vindos da província e zonas rurais, com poucas posses, deu origem à ocupação dos espaços deixados pelos mais abastados. Foi o caso das quintas do Marquês de Abrantes, dos Alfinetes, da Salgada e do Chalé, onde foram construídas inúmeras barracas para acolher os trabalhadores que chegavam a Lisboa pela linha do Norte, à estação de Braço de Prata, transformando-se no Bairro Chinês, o maior bairro de lata de Lisboa 3. Também nesta zona oriental e nas imediações das fábricas deu-se a construção de habitação colectiva operária, muitas vezes providenciada pelos grandes industriais, em vilas operárias exclusivamente de habitação ou em estruturas que incluíam lojas, oficinas ou armazéns nos pisos inferiores.

 

Lisboa pós-industrial

Deslocadas, obsoletas na sua produção ou vítimas de novas políticas de consumo comunitárias, as indústrias na zona Oriental da cidade foram, nos últimos 50/60 anos, fechando portas, tal como as infra-estruturas portuárias que se viram desactualizadas. Os amplos espaços que as serviam ficaram votados ao abandono e decadência, esvaziados, na expectativa de receberem novos ocupantes e diferentes apropriações.

A Expo’98 trouxe uma grande vontade de modernização a esta zona da cidade, ocupada por esses espaços abandonados e obsoletos, no intuito de retomar a sua relação com o rio. Foi definida uma Zona de Intervenção de 350ha, ao longo de 5km de frente fluvial, onde a área expositiva preenchia 50ha. Mas a motivação foi radical e as operações que envolveu tomaram o sentido de uma gigantesca limpeza de solos e total transformação dos seus usos, possibilitando só de modo pontual a memória desse património passado. Foi assim originado o Parque das Nações, um enorme parque urbano onde se foi densificando a área habitacional, apesar da generosidade dos espaços públicos. Este era anunciado como o grande catalisador de uma nova dinâmica nessa zona oriental, onde o efeito de “contágio” iria trazer uma transformação e valorização das áreas adjacentes, mas o seu “carácter de excepção” fez com que se fechasse sobre si próprio 4. 

Na mesma época, a nova utilização comercial dos armazéns portuários no Cais da Pedra e do Jardim do Tabaco, na zona de Santa Apolónia, pareciam também ir no sentido de devolver uma outra vida à faixa ribeirinha oriental, viabilizando um encadeamento mais urbano entre esta área, a Sul, e o próspero Parque das Nações, a Norte. Mas a atenção sobre o pedaço de cidade entre Santa Apolónia e Matinha tomou um ritmo bastante mais lento do que seria de esperar. Os investimentos nessa área foram sobretudo privados e pontuais, abstendo-se o Estado de intervenções de grande envergadura que pudessem trazer algum ímpeto a essa estagnação. 

Neste contexto destacaram-se os então chamados Jardins do Braço de Prata (hoje Prata Living Concept), projectados em 1998 pelo Pritzker italiano Renzo Piano, que prometiam ser um complexo luxuoso numa zona esquecida da cidade. Os amplos terrenos da antiga Fábrica do Material de Guerra do Braço de Prata foram desafectados para aí implantar um conjunto de edifícios icónicos e grandes áreas ajardinadas, com vista para o Tejo e uma nova vivência que em nada nos recorda a dos habitantes locais. Mas o timing do processo de aprovação camarário e os problemas financeiros do então promotor – a Obriverca – colocaram as obras em pausa, sendo só retomadas em 2016, desta feita promovidas pelo fundo fechado Lisfundo, gerido pela Norfin. Estes mesmos atrasos permitiram uma outra situação: foi cedida, temporariamente, parte das instalações da antiga fábrica que não havia sido demolida – um palacete do século XIX que havia sido ocupado pelos militares e transformado na administração da fábrica, e onde se planeava instalar o stand de vendas do complexo – ao filósofo Nuno Nabais para aí activar um espaço cultural. A Fábrica Braço de Prata abriu em 2007, numa ocupação de convivência com o existente, sem recorrer a operações radicais de limpeza. Este foi, sem dúvida, um projecto-charneira na ocupação de espaços existentes nesta área da cidade, em que duas livrarias, área de restauração e uma intensa programação de concertos, exposições, residências artísticas e eventos atraem uma nova e diferenciada população a esta zona da cidade, mais jovem e mais culta, que a aprecia na sua essência espacial e dá valor ao legado industrial e histórico. A Câmara Municipal de Lisboa (CML) não foi indiferente a este caso de sucesso e, em 2016, aprova a transmissão para o património municipal deste espaço (como compensação no âmbito da operação do loteamento dos Jardins do Braço de Prata), com a pretensão de o manter como equipamento cultural, gerido pela mesma equipa.

Na área contígua, o edifício A Tabaqueira com a sua estrutura de ferro, paredes de tijolo e cobertura envidraçada, faz parte do imaginário que os lisboetas têm desta zona da cidade. A original fábrica de tabaco, do industrial Alfredo da Silva, foi depois utilizada pela Fábrica do Material de Guerra do Braço de Prata, e comprada no início dos anos 1990 pela EDP, para construção de um complexo habitacional e de serviços que não teve seguimento. Anos mais tarde, foi adquirida pela Obriverca para total demolição com vista à ampliação da área dos Jardins do Braço de Prata. Entretanto, a CML impôs a manutenção deste edifício, reactivando a sua memória, para onde Piano previa, em 2017, instalar um mercado de apoio ao empreendimento vizinho 5. Notícias recentes 6 dão conta da submissão à CML de um projecto, incentivado por Renzo Piano e da autoria da sua conterrânea genovesa Grazia Repetto, para transformar A Tabaqueira num museu dedicado à gastronomia portuguesa, com equipamentos comerciais e espaço público ajardinado que se abre “à vida, à cultura e ao turismo”.

 

A Câmara Municipal de Lisboa e outras instituições

As avultadas somas gastas pelo Estado português no Parque das Nações e a crise económica internacional consequência do subprime americano vieram dificultar a aposta do erário público nesta zona carenciada da cidade. Só no período de retoma se vêem então surgir, de modo consequente, novas políticas urbanas municipais para esta área em desindustrialização. 

Iniciado em 2005, o Plano de Pormenor da Matinha (PPM), concebido pelo atelier Risco, surge como um interesse do município lisboeta em dar uma ordenação a estas áreas desafectadas de indústria pesada de fabricação de gás. Mas embora o PPM esteja já em vigor, as acções no terreno parecem reduzir-se ainda a mudanças de propriedade da superfície – uma inacção que também significa rentabilização. Em área confinante, na faixa que se estende ao longo do rio e que vai até à Doca do Poço do Bispo, surge o concurso público internacional para o Parque Ribeirinho do Oriente, lançado pela CML, em 2015. Inicialmente anulado, mas depois com novo procedimento que aprovou o projecto do atelier f/c, das arquitectas paisagistas Catarina Assis Pacheco e Filipa Cardoso de Menezes, deu início às obras da primeira fase em 2018, na frente do projecto Prata Living Concept, a cargo do promotor desse loteamento. Talvez também pela mesma lógica de compromisso de contrapartidas, a segunda fase aguarde que se desencadeiem as operações urbanísticas do PPM, para finalizar um espaço de lazer que vai finalmente estabelecer a ligação física com o Parque das Nações. 

Um pouco mais a Sul, a delimitação da Área de Reabilitação Urbana (ARU) do Vale de Chelas, aprovada em 2015, vem mapear um importante eixo, no limite das freguesias da Penha de França e do Beato, que faz ligação ao núcleo habitacional de Chelas ao longo da rua Gualdim Pais e a Estrada de Chelas, entre reminiscências rurais, palácios, habitação operária e fábricas abandonadas. Dos instrumentos passíveis de execução municipal propõem-se, entre outros, demolições, expropriações, exercer o direito de preferência e gerar o Corredor Verde Oriental do Vale de Chelas (no qual se incluem o recente Parque Urbano do Vale de Chelas e o Parque da Bela Vista), um estudo de NPK arquitectos paisagistas. Dentro desta área, a CML marcou já a sua estratégia de reabilitação com a transformação do antigo Mercado Municipal de Xabregas no Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, um projecto de João Santa-Rita inaugurado em 2017.

Olhando para o interior deste território, do lado oeste da estação de comboio de Marvila, está implantada a Biblioteca Municipal de Marvila, um projecto que se prolongou durante 20 anos, tendo a obra sido concluída em 2016. Esta é hoje a maior biblioteca de Lisboa, um importante equipamento público que veio resolver a ruína da antiga Quinta das Fontes e trazer uma melhoria na oferta cultural e pedagógica à população local.

A Este da linha do comboio, a meio da rua do Açúcar, está instalado um outro equipamento, do domínio municipal até 2014, o Albergue da Mitra. Junto ao Palácio da Mitra, ocupa uma área de 2ha de antigos armazéns da Fábrica de Cortiça da Mitra e uma antiga quinta. Com um historial complexo, pois foi o local onde a polícia do Estado Novo escondia os mendigos da capital em condições muito questionáveis, transformou-se depois num espaço de acolhimento de indivíduos sem família, que de algum modo se mostram incapacitados de levar as suas vidas autonomamente. É gerido desde 2011 pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) e foi aprovada pela CML a transferência de terrenos e equipamentos para a referida instituição, em 2014. Nesse mesmo momento, foi anunciado 7 pelo seu provedor, Pedro Santana Lopes, o projecto de grandes obras de transformação deste espaço num centro de apoio social aberto a toda a comunidade 24 horas por dia. Aqui, os lisboetas poderiam também ter acesso a restauração, lavandaria, oficina e creche, numa tentativa de integração de utentes e visitantes. O projecto de requalificação, elaborado pelos serviços da SCML, representaria um investimento inicial de cinco milhões de euros, com término em 2016 – continua anunciado no website da SCML 8 como intervenção futura, mas sem início preciso.

Iniciativa da CML, o programa Uma Praça em cada Bairro tem já planeada a reabilitação da Alameda do Beato, um espaço público arborizado no núcleo histórico da freguesia, junto à fábrica e silos do grupo agro-alimentar Cerealis, que serve também o convento do Beato, um imóvel classificado de interesse público em 1984, do mesmo proprietário. Este equipamento privado – um espaço singular que tem sido alugado para eventos e exposições –, para o qual existe já um projecto de urbanização da autoria do atelier Risco, foi recentemente vendido pela Cerealis ao grupo suíço Larfa Properties 9.

Em 2016, durante o encontro nacional de incubadoras que antecedeu o Web Summit, a CML abriu as portas de parte do espaço desactivado da antiga Manutenção Militar – 19 edifícios, num total de 35 000m2 concessionados pelo Exército ao município, por 50 anos – com a denominação de Hub Criativo do Beato (HCB). Em Julho 2017 foi apresentado ao público o novo projecto de dinamização do local, dedicado ao empreendedorismo, inovação e criatividade, numa estratégia da CML para, através da sinergias proporcionadas pelas três edições do Web Summit em Lisboa, impulsionar a revitalização daquela zona da cidade e reforçar a sua economia. Garantidas as infra-estruturas pela CML e uma área museológica de memória do local pela EGEAC, a gestão e programação está a cargo da incubadora de negócios Startup Lisboa, uma associação privada sem fins lucrativos fundada em 2011 pela CML, o Montepio e o IAPMEI com a missão de apoiar a criação de empresas e empreendedores em início de actividade. A identidade gráfica é da autoria da agência Solid Dogma do artista Vhils (um outro interveniente na zona oriental com a galeria Underdogs no Braço de Prata).

O HBC promete ser uma referência na Europa, no âmbito dos hubs de empreendedorismo, e integrar a incubadora de empresas alemã Factory, o Super Bock Group, a Mercedes-Benz.io e a Web Summit, empresas-âncora que vão atrair tantas outras ao local, que se pretende uma referência na inovação e criatividade, e que acolherá cerca de três mil trabalhadores.

A Factory Lisbon deu já início às obras de remodelação dos cerca de 10 000m2 da fábrica de massas e bolachas, dois dos edifícios do conjunto situados frente ao Tejo, que prevê concluídas no Verão de 2019. Envolveu no projecto de arquitectura os alemães Julian Breinersdorfer e Loescher & Boeckmann, juntamente com o arquitecto local José Baganha. A cobertura do edifício terá uma área de lazer ajardinada de 2 000m2 disponível ao público. Também o projecto de reconversão do edifício da central eléctrica foi já publicitado: uma micro-cervejeira do Super Bock Group com arquitectura de Eduardo Souto de Moura, um espaço público e multifacetado vocacionado a receber diversos eventos e ser a grande “sala de recepção” do HCB.

Em apresentação pública, Fernando Medina divulgou que também a ala norte da Manutenção Militar está em vias de cedência à CML. Somar-se-ão 55 000m2, que contam com um teatro de 700 lugares, uma creche e uma quinta que, desejavelmente, serão renovados e requalificados para serem colocados ao serviço dos lisboetas, em especial da população local. 

Esta é uma manobra impactante no local, que espacialmente representa cerca de 100 000m2 reactivados na cidade, um investimento do domínio público que, apoiado numa regulamentação coerente ao nível dos usos, pode ser muito mais do que um mero agente gentrificador de valorização imobiliária para fins especulativos. 

Vizinho ao HCB, na rua da Manutenção, a nova sede do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática vem marcar a presença da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) no local, já em 2018. O projecto de João Carlos dos Santos, o subdirector-geral da DGPC, vem requalificar uma outra fábrica de tabaco e trazer à cidade um espólio que estava deslocalizado, aumentando a oferta cultural naquela zona, com valências museológicas e de investigação.

Na junção da zona oriental com o centro consolidado da cidade, a extensão do Metro a Santa Apolónia (estação aberta em finais de 2007) mostrou-se, do ponto de vista da mobilidade, um impulso importante nas comutações urbanas, embora com maior impacto nas entradas e saídas da cidade do que na comutação com a rede oriental. 

Promovido pela CML, em conjunto com a Administração do Porto de Lisboa, é talvez o Terminal de Cruzeiros, projecto de João Luís Carrilho da Graça inaugurado em 2018, que possa vir a marcar a reconciliação entre Lisboa central e oriental. Implantado na base da encosta de Alfama, este novo equipamento traz um novo impacto ao nível dos usos para esta parte da cidade, tomando a forma de um espaço público, e vem dar início ao ordenamento do passeio ribeirinho.

É inquestionável o papel da CML neste território tão vasto onde, para além do fundamental papel administrativo e regulador, tem património passível de ser reabilitado, requalificado e colocado ao serviço da cidade, à semelhança do que aconteceu com o Mercado Municipal de Xabregas. Um caso onde poderia intervir é o da Escola Secundária Afonso Domingues, a antiga escola industrial, fechada em 2010 em favor dos planos do TGV e da Terceira Travessia do Tejo, que ligaria Chelas ao Barreiro, que nunca foram concluídos. Deixado ao abandono, o edifício tem sido pilhado e vandalizado ao longo dos anos, sendo no entanto um equipamento de grande potencial para nova utilização, sobretudo quando os valores do imobiliário no centro da cidade se tornam incomportáveis. Mas a CML tem também o dever e os meios de negociação para garantir que mais espaços sejam de usufruto comum, inclusivos e não de excepção e exclusividade. A sua presença no terreno é importante mas as operações parecem ser pontuais ou polarizadas e necessitar de maior concertação entre si. A transformação é essencial mas há que ter em atenção a génese do lugar, mantendo os residentes locais e dando-lhes condições e vivências quotidianas adequadas – para que a história local seja de continuidade e não de ruptura.

 

Os últimos cinco anos

Nestes últimos cinco anos têm-se (re)iniciado investimentos municipais e privados, no sentido de dar um novo direccionamento ao urbanismo e à dinâmica local. 

Como um jogo de pontos, os planos e as intervenções recentes desenham um novo tecido urbano e social e um novo padrão económico, uma nova cidade. O processo de gentrificação está desencadeado. As placas das imobiliárias “vende/aluga” foram-se multiplicando e hoje já vão escasseando. As revistas de lifestyle vão acompanhando o fenómeno, publicando guias de tendências. No Verão de 2018, podemos observar como os espaço decadentes deram lugar a academias de parkour e escalada, lojas de tatuagens e barbearias hipster, restaurantes e laboratórios de experiências gastronómicas de chefes conceituados, fábricas de cerveja artesanal e taprooms de degustação, lojas de mobiliário e design vintage, salas de concertos, espaços para eventos e conferências, ateliers de artistas e galerias de arte, incubadoras e aceleradoras, espaços culturais, criativos ou de trabalho colectivo, alugados à hora, à semana ou ao mês. Os novos participantes na economia da cidade, normalmente ligados à cultura, já se instalaram. A zona oriental está a mudar e a voracidade do mercado imobiliário faz-se notar. São agora os habitantes locais, muitos deles antigos operários e seus familiares, que temem as mudanças e começam a sentir a pressão e a tensão, alguns já sujeitos a serem despejados por terem as suas casas cobiçadas para alojamento temporário 10.

PM