CAU–OA

O Urbanismo é o cimento da cidade*

Expo’98/Parque das Nações: A visão do Urbanista

Por Ana Queiroz do Vale

Urbanista, Presidente Comissão Executiva CAU-OA

 

Vista actual do Parque das Nações
© 1825 Studio
Vista actual do Parque das Nações
© 1825 Studio

 

 

Um tributo a Luís Vassalo Rosa pelo Colégio dos Arquitectos Urbanistas da Ordem dos Arquitectos

 

 

 

“Sinto-me sempre grato pela oportunidade que tive e pelo que resultou, embora se pudesse sempre fazer melhor, mas isso são agora os vindouros ... a quem a cidade pertence” 1. É com humildade e sentido humanista, apenas uma das suas preciosas qualidades, que Luís Vassalo Rosa, urbanista, refere o seu contributo para o que hoje é o Parque das Nações. Peça essencial da urbanidade e actualidade de Lisboa, esta parte da cidade primeiro serviu ao efémero evento Expo’98 e depois, em si mesma, é a cidade do efémero, como a define no artigo publicado pela Editorial Blau 2:

“A cidade hoje é o terreno da máxima mobilidade e competitividade – alterou-se a noção de espaço e de tempo – o que origina novas referências para a comunidade. O modelo urbano reflecte essa transformação – a cidade deixou de ser uma estrutura que se tece e sedimenta com as referências estáveis – deixou de ser um modelo racionalizado, perfeito, estável, hierarquizado e funcional – que cresce harmonicamente de raiz utópica – para passar a ser um espaço de suporte, organizado e memorizável, para acolher múltiplas funções e múltiplas culturas.

A cidade passou a ser o acolhimento da transformação – como uma paisagem que se transforma e renova no seu ciclo de vida – passou a ser a construção e a mutação dos ‘cenários’, reais e virtuais, da vivência urbana e a ter a capacidade para incorporar essa dinâmica; a cidade como que adquiriu a cultura de fruir o ‘caos’. Em síntese, a cidade passou a ser um corpo mais híbrido e mais complexo na sua concepção e mais diversificado na sua arquitectura, modelo que permite trazer para o seu território a máxima ‘centralidade’ e evitar a sua ‘periferização’.

Fazer cidade implica hoje satisfazer a mobilidade e a competitividade; traduz-se no construir para a mudança e para o efémero. O modelo urbano passa a acolher uma arquitectura de singularidades e a estruturar-se segundo um espaço público aberto a múltiplas utilizações e comportamentos.”

“Conceptualmente o urbanismo do ‘efémero’ sintetiza o urbanismo que articula e constrói a paisagem urbana a partir de todos os acontecimentos urbanos, incluindo os mais ou menos efémeros, e como tal reforça a contribuição do espaço público para a caracterização da cidade.

Creio ser esta contribuição essencial da concepção urbanística desenvolvida para a recuperação e reconversão urbanística da Zona de Intervenção da Parque Expo’98, ZI da PE 98; a partir de um acontecimento ‘efémero’ e de todas as realizações que lhe estão associadas, constrói uma paisagem urbana, também ela aberta ao efémero, salvaguardando o sítio e as componentes que o tornam sustentável e memorizável como território urbano duradouro e central.” 3

Se bem entendermos a cidade, onde o urbanista tem um papel fundamental, toda a intervenção é efémera, já que logo depois os utilizadores, a quem destinamos o nosso trabalho, a utilizam e transformam quotidianamente. Um urbanista, para que possa realizar a sua função social e de serviço público, tem de entender que apenas cria espaços de transformação da sociedade, entendida como espaço da sua realização (so-ci[e]dade).

Fui criada no bairro dos Olivais, em Lisboa, também este, exemplo do urbanismo português na construção/urbanização da cidade. Da janela do meu quarto, lugar de infância e adolescência, a paisagem era feita pela horizontalidade do rio Tejo e pela verticalidade da torre de queima da então Petrogal. A doca dos Olivais era também lugar onde aprendi a andar de bicicleta, experimentando livremente os primeiros incidentes de aquisição desta habilidade – assim é a minha memória desta parte da cidade.

São as memórias, provavelmente não só minhas, do que hoje é o Parque das Nações, parte da história de quem viveu nas áreas envolventes, e parte da história da própria cidade de Lisboa, mas também terá de ser de reconhecimento da sua modernidade e essencialidade para a cidade de hoje. 

“Quando me chamaram (...) a minha primeira preocupação foi analisar todos os antecedentes, e analisar muito bem o território que era para mim o elemento essencial. (...) 

(...) É preciso pesquisar o que está a acontecer e como se chegou àquele momento. As coisas não partem do zero. (...)

(...) A torre é uma referência em Lisboa e vai continuar a ser. Queriam deitá-la abaixo. Fui eu que me opus.” 4

Como afirmou Vassalo Rosa, “A cidade guarda a suas memórias” 5 e, digo eu, é isso que faz um urbanista: saber fazer das memórias parte da cidade no futuro.

“A minha preocupação foi, dentro da modernidade do tempo, sobretudo viabilizar um projecto complexo, com múltiplas intervenções, mas que constituísse uma cidade muito clara na sua apreensão e utilização, ancorada em elementos fundamentais.” 6

A cidade é tudo isto: a memória de cada um de nós, e a construção quotidiana, na vivência de todos – memórias individuais e construções colectivas.

Já no que se refere à escolha entre as diferentes opções da cidade de Lisboa, no final entre Pedrouços e Olivais, afirma Vassalo Rosa que “é um golpe de génio” 7 a escolha por esta parte da cidade – Doca dos Olivais.

“São as novas ideias: reabilitar, reinventar, regenerar. Vamos para Nascente para reequilibrar a frente ribeirinha, e para introduzir o elemento de renovação e de regeneração na cidade, que contribua para devolver de uma forma consistente e que se concilie a cidade com o rio.” 8

A intervenção da Expo’98/Parque das Nações mostra-nos também a importância do instrumento Plano de Urbanização na construção de cidade. Foi aí definida a estrutura de intervenção, do território e da cidade, as funções e as utilizações, que serviram de referência para a sua gestão, ainda durante a sua formação.

“Os aspectos económicos, sociais, funcionais, técnicos e culturais, conjuntamente com os aspectos formais, têm no urbanismo igual importância, mas só quando são harmonizados e atingem uma dimensão estética se cumpre verdadeiramente o objectivo do urbanismo. Não basta, pois, dispor da técnica e construir a forma urbana.

Enquanto a arquitectura constitui um acto de criação em contraponto com o local e a natureza, o urbanismo constitui um acto de criação com o local e a natureza. Assim, o urbanismo produz uma nova ordem formal, com dimensão estética e baseada na sua estrutura. É essa ordem formal e essa identidade que diferencia o urbanismo e fazer cidade, das realizações urbanas sectoriais, mais ou menos compatibilizadas. Essa é a responsabilidade do urbanista.” 9

“A urbanização da Zona de Intervenção da Parque Expo’98, tendo por alicerce a concepção do espaço público e edificado para a realização da Exposição Mundial de 1998, Expo’98, propõe-se a revalorizar a relação da cidade com o rio, recuperar o ambiente e a paisagem, reconverter o uso, assegurar a integração deste espaço com uma identidade própria no tecido da cidade.

Este é o objectivo do Plano de Urbanização, quando a realização da Expo’98 impõe, num espaço e prazo limitado, uma concentração urbana e uma densidade de usos apoiada em acessibilidades e parques de estacionamento múltiplos e de capacidade adequados que o seu encerramento podem tender para um vazio e deserto urbano.

Não basta, pois, dar estrutura urbana ao desenho do Recinto da Exposição Mundial: há que assegurar que essa estrutura se integra na cidade e constitui um tecido urbano inovador da singularidade, centralidade e multifuncionalidade pretendidas. 

Assim, a realização da Expo’98, vai marcar o território da Zona de Intervenção e constituir o momento em que:

 

— A cidade de Lisboa se recentra a Oriente e se constitui como centro da Área Metropolitana de Lisboa – a noção de centro deixa de corresponder à de área nuclear, geradora de periferias, para se associar à de uma área extensa, de múltiplas acessibilidades e múltiplos usos.

— O espaço público retoma a escala do peão e é projectado como componente estruturante do centro e da forma da cidade, a que se associa uma nova estética da paisagem urbana e a construção e gestão inovadora desse espaço.

— A Exposição Mundial de 1998 lega o património da sua concretização, em termos urbanísticos – novas morfologias e tipologias –, arquitectónicas – novos edifícios e tecnologias –, culturais – novas manifestações urbanas –, serviços urbanos – galerias técnicas para instalação de infra-estruturas, distribuição centralizada de frio e calor, recolha automática e selectiva de lixo, rede de telecomunicações avançada.

— O efémero e as realizações urbanas que se lhe associam são entendidas como componentes da cidade.

— O projecto urbanístico e arquitectónico reflecte a generalização das técnicas informáticas – que viabilizam novas abordagens conceptuais, novas formas de concretização e gestão do projecto da cidade e da sua monitorização.

— A mentalidade de decisão e gestão da cidade ganha um novo referencial – o da interdisciplinaridade e inter-decisão.

Em síntese, é recuperada para a cidade e integrada para seu uso público de forma consolidada, uma frente ribeirinha de 5km até então margem degradada e vazadouro insalubre da cidade.” 10

 

Assim, o Plano de Urbanização não foi concebido para um evento efémero, mas para a construção de uma nova parte da cidade de Lisboa. Exemplo da relevância de tal nível de planeamento e gestão do território – Plano de Urbanização – é bem relevada pelo seu coordenador, quando afirma que a relação da Gare do Oriente com toda a estrutura urbana conceptualizada “foi o mais difícil problema que tive de resolver”, referindo em concreto que “o Calatrava fechava todas as ligações da Gare do Oriente para a frente. Não permitia que elas funcionassem”. Vassalo Rosa respondia-lhe que “isto é para as pessoas virem passear!” e este é o papel do urbanista na definição das funções do território que projectam: a singularidade dos elementos (arquitectónicos) não pode colocar em causa a estrutura e coerência das vivências urbanas. Foi isso que defendeu e, na minha opinião, conseguiu.

Todos estes princípios e conceitos são hoje actuais e norteiam as intervenções urbanísticas dos nossos dias. Por tudo isto, se não fossem outras razões, Vassalo Rosa foi um Homem à frente do seu tempo.

É esta dimensão humanista do plano que se cria para as pessoas, os “vindouros” nas suas palavras, dos que se servirão e farão, vivendo-a, a cidade que delineamos no plano, que o urbanista deve ter como referência, na qual Vassalo Rosa baseou, para além de toda a sua actividade profissional e valores pessoais, a sua contribuição para a Expo’98 e no que hoje é o Parque das Nações.

O urbanista apenas esboça um ideal, uma utopia, ou conceito, onde a sociedade/cidade se pode desenvolver e construir, mas que, porque ambas são elementos vivos da realidade, tomam as suas decisões (conjuntas) e podem (para além da vontade do urbanista) tomar os seus caminhos, diferentes dos que se estabeleceram pelo Plano (pelo urbanista). 

É o desafio do urbanista encontrar a forma que a sociedade e as pessoas necessitam para o seu futuro, e sobre ele (o território) se desenvolverem. Um urbanista deve entregar todo o seu saber para a definição de um futuro, que se desconhece, e que apenas os utilizadores desse território podem executar ou viver. 

Vassalo Rosa relata:

“O meu dia-a-dia, enquanto responsável do Plano de Urbanização, fez-se desse confronto, que procurei enriquecer, muitas vezes com a visão de contraponto do arquitecto. Preocupei-me sempre em incentivar o acto de criação, em ser o alicerce e a poesia da cidade aberta à invenção, sem contudo deixar de ser o técnico responsável por um modelo urbano que se caracteriza e constrói: em ser ainda a consciência crítica e sustentada na salvaguarda de um conceito e de uma cultura de fazer cidade, sobretudo numa experiência em que, muitas vezes, a arquitectura se impõe sem reconhecer ou entender o urbanismo.

Ser o responsável do Plano de Urbanização é muitas vezes um acto de solidão – o de nos interrogarmos sobre o que se propõe de definitivo para o futuro corpo da cidade e se antevê desfigurar nesse corpo.” 11

Hoje olhamos o que a cidade foi construindo a partir de uma ideia, um plano, uma utopia, mas devemos todos olhar, como Vassalo Rosa, que a cidade passou a pertencer a quem a vive e a quem a faz, a partir do plano e do trabalho do urbanista, sempre obra inacabada e que só pode ser feita, completada, por outros: aqueles a quem efectivamente o plano se destina.

Para quem pretende obter resultados imediatos de uma intervenção desta natureza, deverá rever as suas expectativas. A cidade, como a sociedade, são organismos vivos que têm processos de transformação lentos, e que só após décadas se podem avaliar. 

A cidade não é um produto fast-food e a actuação do urbanista não pode ser orientada para o consumo imediato de soluções que só com a participação dos destinatários – as pessoas – se podem, por fim, definir, executar e completar.

“O maestro não é mais importante que o executante. É isso que eu entendo que é a construção da cidade.” 12

 

 

 


 

 

* Luís Vassalo Rosa in entrevista à RTP/Antena 1: Vinte anos Expo ’98, disponível em: www.rtp.pt/noticias/pais/vinte-anos-expo98-entrevista-com-luis-vassalo-rosa_v1077875