CRÍTICA

A Forma da Forma quando tudo é arquitectura

Por Luís Santiago Baptista
Arquitecto, curador e editor

 

Em 2001 Odisseia no Espaço ficámos fascinados com aqueles puros monólitos. Lançado em 1968, ano determinante de visceral convulsão social e revolta cultural, o filme realizado por Stanley Kubrick, a partir de um argumento de Arthur C. Clarke, iniciava-se com a aparição de um monólito paralelepipédico que punha em marcha a civilização humana. Sem origem, função e matéria conhecidas, mas com uma forma definida, aquele monólito apresentava-se-nos essencialmente como um enigma. Testemunharíamos ao longo da narrativa o seu poder imperscrutável sobre os humanos, uma forma para entrar nos mistérios da existência.

 

A 4ª Trienal de Arquitectura de Lisboa, com curadoria de André Tavares e do recentemente falecido Diogo Seixas Lopes, lançou o tema desafiante A Forma da Forma, como interrogação sobre o estatuto da forma na contemporaneidade. Na sua inerente constituição tautológica, A Forma da Forma não deixava de se apresentar como uma aposta arriscada e polémica. Desde logo, pela viragem da disciplina para o campo das ciências sociais e humanas realizada na última década, na qual a Trienal de Lisboa anterior de Beatrice Galillee tinha sido um dos acontecimentos mais óbvios, mas que este ano teria novas manifestações afirmativas na Trienal de Arquitectura de Oslo e na Bienal de Design de Istambul, esta última com curadoria dos teóricos de arquitectura Mark Wigley e Beatriz Colomina. Estas novas abordagens disciplinares expansivas têm-se centrado na crítica ao formalismo da arquitectura contemporânea, questionando a afirmação do fenómeno sistémico do star-system arquitectónico e consequente afastamento das grandes problemáticas das sociedades contemporâneas. A questão formal tem por isso adquirido uma condição de interdito, de tema maldito perante o formalismo generalizado da cultura arquitectónica dominante. É neste contexto que se pode constatar não só a coragem dos curadores mas a pertinência do tema A Forma da Forma. A Trienal deste ano poderia ser a procura de uma vacina para combater a doença inoculando o próprio vírus, em doses homeopáticas.

 

 

Conferência de imprensa · 4ª Trienal de Arquitectura de Lisboa, curadoria de André Tavares e Diogo Seixas Lopes
© Pedro Sadio
Conferência de imprensa · 4ª Trienal de Arquitectura de Lisboa, curadoria de André Tavares e Diogo Seixas Lopes
© Pedro Sadio

 

 

André Tavares manifesta a insatisfação da situação presente da arquitectura, salientando a sua oscilação entre os extremos do “formalismo dos arquitectos-estrela” e o “activismo e consequentes acções socialmente responsáveis de uma arquitectura centrada no informal”. A estes acrescenta ainda a “burocratização” e consequente banalidade da construção corrente. Os curadores desta edição da Trienal procuram intencionalmente distanciar-se desta condição espartilhada: “a arquitectura não pode dar-se ao luxo de ser temática: arquitectura participativa, arquitectura digital ou arquitectura da moda”, sendo que  “os arquitectos têm que ser capazes de transcender estas fronteiras temáticas que simplificam excessivamente a arquitectura”. Tavares e Seixas Lopes propõem assim uma abordagem à forma arquitectónica como meio para o realizar.

 

Torna-se pois relevante perceber que A Forma da Forma encontra a sua genealogia disciplinar precisamente no momento anterior à afirmação do formalismo contemporâneo, a partir da década de setenta, patente na institucionalização sucessiva das tendências pós-modernistas, desconstrutivistas e neo-minimalistas. Importante aqui o facto de que foi ao longo dos anos 60 que a arquitectura colocou verdadeiramente a questão do estatuto da forma arquitectónica, afirmando a sua plena autonomia como questão disciplinar e estabelecendo os seus vínculos com o horizonte da história, de Palladio a Durand, passando por Piranesi e Boullée.

 

Façamos então uma pequena digressão pelas propostas de natureza formal dessa década. Em 1962, Hans Hollein e Walter Pichler publicavam o manifesto Absolute Architecture, por uma arquitectura “pura”, “espiritual” e “sem finalidade”, afirmando que “o que construirmos encontrará a sua utilização”.  A “forma construída” era o que ficava desse processo de aproximação ao “absoluto”. No ano seguinte, Peter Eisenman apresentava o seu doutoramento sobre The Formal Basis of Modern Architecture , propondo uma abordagem exclusivamente formal à heróica arquitectura moderna. No seu artigo do mesmo ano, “Towards an Understanding of Form in Architecture”, revelava o seu interesse na “relação da forma com qualquer arquitectura”, tendo em conta que “as considerações formais são a base de toda a arquitectura independentemente do estilo”. Defendia a “supremacia para a forma”, ou seja, “dar preferência às finalidades absolutas sobre as temporais”. A forma é aqui aquilo que está antes ou para além de toda a sua determinação exterior. Um pouco mais tarde, em 1966, Aldo Rossi publicava o seu tratado L’Architettura della Città, onde desenvolvia uma abordagem “tipológica” à morfologia urbana, propondo cindir a moderna interdependência entre a forma e a função. Afirmava a condição da “invariante” formal ao longo da história, tendo em conta que “o valor destes factos reside unicamente na sua forma”. A forma “tipológica” manifestava-se na sua “permanência” material. Finalmente, no final dos anos 60, os Superstudio desenvolviam, em modo ideologicamente crítico, The Continuous Monument, uma “única forma de arquitectura” de “perfeição estática”, um “objecto fechado e imóvel”, radicalmente abstracto, destituído de qualquer função e significado aparentes, implantado indiferenciadamente nos mais diversos lugares do globo terrestre. Com o “monumento contínuo” a forma tornava-se muda, autoreferenciada. Em última análise, pode-se dizer que A Forma da Forma encontra nestes, e noutros exemplos da década de sessenta, a sua formulação embrionária.

 

Mas A Forma da Forma é hoje também a concretização, num grande evento periódico, de uma tendência internacional de recentramento disciplinar, com o consequente foco nas questões formais e construtivas. A verdade é que esta edição da Trienal de Lisboa convoca um conjunto de energias e movimentos gerados em volta de epicentros na Suíça e Itália, com destaque, para a ETH de Zurique e para o grupo em torno da revista San Rocco, meios com os quais Seixas Lopes e Tavares foram construindo ligações importantes e que, significativamente, marcam presença nos participantes de A Forma da Forma. Por outro lado, não se pode abordar hoje a questão da autonomia disciplinar e da dimensão formal da arquitectura sem referir o papel fundamental desempenhado, nos últimos anos, por Pier Vittorio Aureli. Tivemos a sorte de o ter no elenco das conferências da Trienal de 2010 e agora como participante na exposição O Mundo nos Nossos Olhos. Essa influência manifesta-se tanto ao nível teórico, principalmente, com os livros The Project of Autonomy: Politics and Architecture within and Against Capitalism de 2008, focado no contexto arquitectónico  italiano na transição dos anos 60 para os anos 70, e The Possibility of an Absolute Architecture de 2011, onde aborda, entre outros, arquitectos como Palladio, Piranesi,  Boullée, Rossi, Ungers e mesmo o jovem Koolhaas, como ao nível prático, com a sua actividade projectual, com Martino Tartara, no premiado estúdio Dogma. A Forma da Forma enquadra-se neste contexto teórico em desenvolvimento, embora a genealogia permaneça mais implícita do que explícita.

 

Mas concentremo-nos no programa da Trienal de Arquitectura de Lisboa propriamente dita. Esta edição, apesar da relativa autonomia de cada exposição, precisa de ser compreendida como um todo. Isto é bastante claro quando no catálogo André Tavares refere: “A Forma da Forma assenta neste tripé – oscilando entre forma-processo-descrição, entre autoria-construção-análise, entre o visual-físico-social – de forma a compreender o papel da arquitectura na sua contribuição para a produção do espaço”. Esta tripla construção reflecte-se explicitamente nas três exposições centrais, respectivamente, A Forma da Forma no MAAT, Obra na Fundação Calouste Gulbenkian e O Mundo nos Nossos Olhos no CCB.

 

 

A Forma da Forma, curadoria de Diogo Seixas Lopes, conteúdos de Socks Studio
© Tiago Casanova
A Forma da Forma, curadoria de Diogo Seixas Lopes, conteúdos de Socks Studio
© Tiago Casanova
A Forma da Forma, curadoria de Diogo Seixas Lopes, conteúdos de Socks Studio
© Tiago Casanova
A Forma da Forma, curadoria de Diogo Seixas Lopes, conteúdos de Socks Studio
© Tiago Casanova
A Forma da Forma, curadoria de Diogo Seixas Lopes, conteúdos de Socks Studio
© Tiago Casanova
A Forma da Forma, curadoria de Diogo Seixas Lopes, conteúdos de Socks Studio
© Tiago Casanova
A Forma da Forma, curadoria de Diogo Seixas Lopes, conteúdos de Socks Studio
© Tiago Casanova
A Forma da Forma, curadoria de Diogo Seixas Lopes, conteúdos de Socks Studio
© Tiago Casanova
Pavilhão A Forma da Forma, projecto de Nuno Brandão Costa, com Office KGDVS e Johnston Marklee
Pavilhão A Forma da Forma, projecto de Nuno Brandão Costa, com Office KGDVS e Johnston Marklee

 

 

A exposição central, tendo em conta que assumiu o próprio título da Trienal, A Forma da Forma, realiza-se no pátio exterior do edifício da Central Tejo, no recém-inaugurado MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia. Com curadoria de Diogo Seixas Lopes, esta construção efémera em escala real ganha a forma de um desafio, a partir de uma série de perguntas seguidas de uma hipótese: “O que é a forma? O que quer dizer “forma arquitectónica”? E que significado tem ela hoje? Na nossa perspectiva, a arquitectura é uma construção visual com um amplo campo de responsabilidades e valores que tendem a permanecer ocultos”. Antes de tudo, um desafio à experiência do espaço real, uma vez que curador percebeu que ficaria sempre aquém se se baseasse meramente em representações. Este é, antes de tudo, uma construção verdadeira, um espaço real de experiência. Porém, paradoxalmente, é igualmente uma representação, tendo em conta que os seus espaços remetem para obras ou projectos existentes. Na verdade, é difícil aceitar, à partida, o argumento de redução formal destes projectos, por supressão do lugar, programa, técnica e matéria, que diga-se foram os princípios fundamentais de legitimação da forma arquitectónica ao longo da história. Estas são efectivamente construções abstractas, espaços puros aos quais se subtraiu toda a determinação exterior, seja ela contextual, funcional, linguística ou material. Mas, perante o risco máximo assumido, esta construção torna-se, num certo sentido, outra, libertando-se do seu vínculo à realidade. E isto só se percebe verdadeiramente quando se entende A Forma da Forma, não tanto como um manifesto teórico, mas como a materialização de um processo de investigação. De facto, esta construção é resultado de um processo de colaboração entre três ateliers jovens, os belgas Office Kersten Geers David van Severen, os norte americanos Johnston Marklee e o português Nuno Brandão Costa, que se foi delineando com o desenvolvimento do processo. Este work in progress teve os seus momentos problemáticos, desde logo com a passagem a meio do processo do interior para o exterior da Central Tejo, mas também os seus momentos reveladores, como quando os três ateliers decidem avançar pela selecção dos seus espaços, embora realizada não pelos próprios mas pelos outros dois participantes. O resultado é uma nova construção feita da articulação de espaços de projectos dos três ateliers, ou seja, um cadavre-exquis de diferentes formas e espaços. Acrescenta-se ainda um outro layer que atravessa toda esta agregação de espaços, sob a forma de um atlas de imagens que procura dialogar com cada uma das salas. Se nalguns casos as analogias são plenamente frutíferas, como no caso das esculturas de Sol LeWitt colocadas no nine-square plan de uma casa dos Office, noutras revelam-se bastante encriptadas. Já a presença das reproduções do Campo Marzio de Piranesi e do Recueil de Durand, excepcionalmente colocadas na horizontal sobre mesas, inversamente ao atlas colocado sob a vertical nas paredes, assumem-se como fundamentos conceptuais de A Forma da Forma. A forma é aqui projecto e arquivo, imaginação e rememoração, atemporalidade e historicidade. No limite, este é o argumento construído da forma da forma. Mas a verdade é que este não se deixa desvendar facilmente, tendo em conta a difícil leitura do processo na instalação construída, bem como o possível desconhecimento dos projectos e respectivos lugares convocados. De certo modo, o referido argumento será o mesmo que atravessa a enigmática intervenção artística Uma História Triangular de Eduardo Souto de Moura, comissariada por Pedro Bandeira no Palácio Pombal, como uma meditação do arquitecto sobre a forma e matéria da “figura da pirâmide” ao longo da história.

 

 

Exposição Obra, curadoria de André Tavares e projecto expositivo de SAMI
© Tiago Casanova
Exposição Obra, curadoria de André Tavares e projecto expositivo de SAMI
© Tiago Casanova
Exposição Obra, curadoria de André Tavares, Bétons Armés Hennebique
© Tiago Casanova
Exposição Obra, curadoria de André Tavares, Bétons Armés Hennebique
© Tiago Casanova
Exposição Obra, curadoria de André Tavares, Coreografias, Pedro Alonso e Hugo Palmarola
© Tiago Casanova
Exposição Obra, curadoria de André Tavares, Coreografias, Pedro Alonso e Hugo Palmarola
© Tiago Casanova

 

 

Esta interpretação da forma encontra na exposição Obra na Gulbenkian, com curadoria de André Tavares, a seu segundo argumento implícito. A apologia da construção, a defesa da dimensão material da arquitectura, encontra o seu foco no habitualmente oculto processo de obra. Curiosamente, este tinha já sido o tema de uma rubrica da edição anterior do Jornal Arquitectos, cuja direcção Tavares tinha partilhado com Seixas Lopes. “O estaleiro de obra é o lugar onde o projecto toma forma”, afirma o curador. Entre o projecto e a obra construída, está esse momento mediador determinante onde tudo se joga e, acima de tudo, onde grande parte dos problemas dos arquitectos hoje verdadeiramente se colocam, tal como Tavares não se cansa de dizer. A exposição é surpreendente, não só pelo tema, mas pelo modo como curatorialmente é montada. Desde logo, à entrada somos interpelados por um corrimão de desenho preciso e construção cuidada, que nos guia para a galeria, projecto dos SAMI que assinam o projecto expositivo. A abordagem em diversos temas aposta numa grande diversidade de dispositivos, atravessando com grande liberdade e à vontade diversos pontos de vista e momentos históricos. Faz, na verdade, um cruzamento intencional entre questões contemporâneas e investigação de arquivo. No primeiro caso, por exemplo, mostra-nos o trabalho de carácter social da Usina em São Paulo ou a complexidade de grandes obras novas ou de reabilitação, respectivamente, com a Casa da Música do OMA e o Neues Museum de David Chipperfield. No segundo caso, apresenta-nos o fascinante projecto McAppy Report de Cedric Price nos anos 70, com o intuito de reorganização do estaleiro de obra, apresentado a partir de uma colaboração com o CCA de Montreal, e o visionário processo de implementação do betão armado no final do século XIX pela empresa Hennebique, neste caso através de uma parceria com a Cité de l’Architecture & du Patrimoine de Paris. Estes últimos revelam uma aposta ganha pela Trienal no estabelecimento de parcerias com importantes instituições e arquivos internacionais. Finalmente, tem que se destacar o núcleo temático das “coreografias”, coordenado de Pedro Ignacio Alonso e Hugo Palmarola, que nos apresenta os reflexos populares dos sistemas de construção nos filmes de animação, confrontando a presença da viga metálica nos Estados Unidos da América com o painel de betão prefabricado na União Soviética. Com uma série de cenas humorísticas, colocadas lado a lado, não só se expressa toda a história do mundo recente dividido pela Cortina de Ferro, como se torna evidente o impacto da construção arquitectónica na cultura em geral. Obra traz à luz aquilo que habitualmente se esconde da vista por trás de tapumes. Esse tempo suspenso mas de transformação magnificamente captado nas fotografias de longa exposição dos estaleiros de obra de Berlim por Michael Wesely. Uma nota também para o reforço da dimensão social do processo de obra que nos é dado pelo filme Labor de Richard Seymour, Tim Abrahams e Pete Collard, projecto associado da Trienal apresentado no Palácio Pombal, centrado nos testemunhos da mão-de-obra portuguesa nos actuais estaleiros de Londres.

 

 

Exposição O Mundo nos Nossos Olhos, curadoria de FIG Projects
© Tiago Casanova
Exposição O Mundo nos Nossos Olhos, curadoria de FIG Projects
© Tiago Casanova
Exposição O Mundo nos Nossos Olhos, curadoria de FIG Projects
© Tiago Casanova
Exposição O Mundo nos Nossos Olhos, curadoria de FIG Projects
© Tiago Casanova
Exposição O Mundo nos Nossos Olhos, curadoria de FIG Projects, Rua Arquitetos
© Tiago Casanova
Exposição O Mundo nos Nossos Olhos, curadoria de FIG Projects, Rua Arquitetos
© Tiago Casanova
Exposição O Mundo nos Nossos Olhos, curadoria de FIG Projects, Christ e Gantenbein
© Tiago Casanova
Exposição O Mundo nos Nossos Olhos, curadoria de FIG Projects, Christ e Gantenbein
© Tiago Casanova

 

 

O terceiro pólo central da Trienal de Lisboa é apresentado na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém. Com curadoria do colectivo FIG projects, de Fabrizio Gallanti e Francisca Insulza, a exposição O Mundo nos Nossos Olhos congrega, pela primeira vez, uma quantidade significativa de investigação urbana, realizada nos últimos anos em vários pontos do mundo. Antes de tudo, é impressionante a presença num mesmo lugar de investigações que nos habituámos a ver de modo disperso em conferências e publicações. Só por isso esta exposição já vale a pena. Os projectos apresentados segundo núcleos temáticos desenvolvem perspectivas muito diversas, desde a recuperação das concepções da utopia até às investigações tipológicas e taxonómicas, passando pelas abordagens mais activistas à realidade urbana. É importante perceber, em primeiro lugar, a aproximação mais analítica do que propositiva do material convocado, cruzando questões de ordem geográfica, económica, social e cultural. Nas palavras dos curadores: “Os arquitectos têm empregado um sofisticado arsenal de instrumentos próprios do seu ofício e tomaram de empréstimo técnicas e competências de outras disciplinas e práticas para gerar descrições e análises de matérias tão complexas. Estas acções intersectam os interesses de economistas, urbanistas, investidores e agentes políticos, e ainda envolvem vários públicos  num novo entendimento da cidade”. Não o excluindo totalmente, o projecto de arquitectura, ao contrário das outras exposições do “tripé”, não é aqui o foco principal. A atenção está centrada essencialmente nas tentativas de compreensão, descrição e especulação derivadas da condição urbana contemporânea, em continuidade com as grandes transformações operadas com a modernidade. E é preciso reconhecer, perante o material apresentado na exposição, o interesse crescente dos arquitectos por estes assuntos e abordagens, contribuindo com novas estratégias de análise e dispositivos de visualização. Torna-se, por outro lado, evidente que estas novas tarefas manifestam um reinvestimento disciplinar nas questões da representação. Na exposição, como projecto expositivo convincente dos suíços-portugueses Barão Hutton, os diagramas, mapas, plantas, axonometrias, fotografias, filmes, modelos tridimensionais dominam, revelando a intensa reapropriação de velhos instrumentos de novas maneiras. A este nível é impressionante atestar a nova vida da axonometria. Por outro lado, torna-se determinante apreender o vínculo de grande parte destas investigações a programas académicos de algumas das mais relevantes universidades dos Estados Unidos da América, Holanda, Itália e Inglaterra. Mas O Mundo nos Nossos Olhos não deixa de levantar algumas interrogações. Não se pode deixar de sentir a distância de muita desta investigação à realidade concreta. Alguma dela, por muito que se defenda o contrário, tem uma dimensão profundamente disciplinar, por vezes mesmo com tonalidade fortemente irónica ou mesmo delirante. Veja-se, por exemplo, alguns casos de reapropriação distópica da utopia ou a actual febre taxonómica em roda livre. Se O Mundo nos Nossos Olhos demonstra a vontade dos arquitectos de compreender e actuar na cidade contemporânea, igualmente torna presente o fosso que os separa dela.

 

 

Sines: Logística à beira-mar, A Terceira Água, projecto vencedor do concurso Universidades, Flora di Martino, Rita Martins e Saule Grybenaite (FAUP)
Sines: Logística à beira-mar, A Terceira Água, projecto vencedor do concurso Universidades, Flora di Martino, Rita Martins e Saule Grybenaite (FAUP)
The Power of Experiment, Artéria
© Carlos Gomes
The Power of Experiment, Artéria
© Carlos Gomes

 

 

Se as três exposições centrais constroem, em conjunto, o argumento de A Forma da Forma, os projectos satélite e os projectos associados permitem uma expansão do tema para outros territórios e campos de acção. Desde logo, estes projectos cumprem a função de construir vínculos com a realidade portuguesa, seja académica ou profissional. O concurso de Sines, lançado no contexto das escolas portuguesas de arquitectura e paisagismo, colocou sobre a mesa a questão infra-estrutural e logística do território. Focado num lugar de enorme complexidade sentiu-se, aparte o projecto vencedor, uma certa dificuldade em lidar com as questões mais programáticas e estratégicas da arquitectura. Um vislumbre de O Mundo nos Nossos Olhos teria aqui sido útil, não obstante a óbvia anacronia. Por outro lado, o projecto The Power of Experiment, coordenado pelas Artéria, convocou uma série de universidades portuguesas e nórdicas para a realização de um workshop experimental. O diálogo salutar de diferentes práticas pedagógicas procurou interrogar as bases do ensino a partir de uma experiência essencialmente colectiva, embora tendo dificuldade, devido à curta duração do evento, em conseguir cumprir o verdadeiro envolvimento com a realidade local.

 

 

A Forma Chã, curadoria de Eliana Sousa Santos
© Tiago Silva Nunes
A Forma Chã, curadoria de Eliana Sousa Santos
© Tiago Silva Nunes

 

 

Duas outras exposições lidam diferentemente com a realidade portuguesa, ampliando o tema de A Forma da Forma. Apresentada na Gulbenkian, A Forma Chã, comissariada por Eliana Sousa Santos, apresenta um fascinante paralelo, a partir do livro A Forma do Tempo de George Kubler, entre arquitectura e arte, estabelecendo ligações imprevisíveis entre Portugal e os Estados Unidos. Se, por um lado, nos revela o poder da associação das formas e imagens na construção da história, bem patente nos vídeos de Ad Reinhart e Robert Smithson, por outro, torna evidente os fundamentos dominantes da cultura arquitectura portuguesa, assentes na definição de Kubler de “arquitectura chã”, tão bem expressos na selecção de imagens de Portugal do próprio arquivo do historiador de arte e na conferência gravada de Paulo Varela Gomes. Num outro sentido, Objecto-Projecto, com curadoria de Godofredo Pereira, introduz explicitamente as questões ideológicas da arquitectura, com a análise do contexto urbano da margem sul de Lisboa cruzada com a formação dos movimentos operários e associações de resistência política. Apresentada no antigo presídio da Trafaria, surpreendentemente no interior da capela, a exposição revela o papel das implicações e transformações sociais na formalização de um determinado território específico.

 

 

Objecto-Projecto, curadoria de Godofredo Pereira, Grupo musical, Cacilhas anos 60/70
© Júlio Diniz, CMA-MCA JD
Objecto-Projecto, curadoria de Godofredo Pereira, Grupo musical, Cacilhas anos 60/70
© Júlio Diniz, CMA-MCA JD

 

 

Outras exposições vêm ainda reforçar essa presença de Lisboa na edição deste ano da Trienal. Se, por um lado,  as Cartas ao Sr. Presidente, um projecto da Storefront for Art and Architecture agora realizado em Lisboa sob orientação de Ivo Poças Martins, que foi em Lisboa pela primeira vez exposto na própria sede dos Paços do Concelho da cidade, se encena um diálogo crítico com a autarquia sob a forma de uma série de cartas abertas, na exposição Os Limites da Paisagem, apresentada na Casa Roque Gameiro de Raul Lino na Amadora, aborda-se a questão da periferia da área metropolitana de Lisboa. Uma nota ainda para os filmes perturbantes das Ruínas do Apocalipse de Cyprien Gaillard, apresentadas com propósito no Teatro Thalia.

 

A 4ª edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa sobre A Forma da Forma revela a indiscutível pertinência do tema da forma na actualidade, bem como a consistência da estratégia montada por André Tavares e Diogo Seixas Lopes. Como programa consegue abordar de modo consistente e aliciante um tema premente, escapando às armadilhas do formalismo e não limitando o seu campo de actuação. Consegue igualmente responder aos vários públicos que se procuram para um evento desta natureza. Sendo assumidamente disciplinar, esta Trienal não deixa de comunicar com uma audiência alargada. As conferências Talk, Talk, Talk, centradas nos temas das exposições principais, embora em ambiente morno, não deixariam de desenvolver algumas questões. Mas, depois do evento, ficam as publicações. A opção de duplicação das edições com, por um lado, os pequenos catálogos em português de cada uma das quatro exposições principais, por outro, o livro em inglês publicado pela prestigiada Lars Müller, editora que tem vindo a editar grande parte das bienais e trienais europeias, não deixa de levantar algumas dúvidas. Se a eficácia dos primeiros se concretiza pela assumpção do formato do catálogo a preço acessível, no segundo caso revela-se uma certa indecisão entre o modelo mais dependente do catálogo ou mais autónomo do livro. Com um tema tão poderoso, fica-se com a sensação que esta seria uma oportunidade única de construir o argumento teórico e a genealogia disciplinar de A Forma da Forma.

 

No entanto, é inequívoco que A Forma da Forma marcará, de alguma maneira, essa viragem disciplinar num contexto internacional, no qual se afirma ainda em contra-corrente. Saliente-se a este nível que a Trienal de Lisboa tem marcado presença nos grandes fóruns de debate no âmbito das principais bienais e trienais, entre Veneza, Lisboa, Oslo, Istambul, Chicago, etc., situação aliás materializada nos sucessivos debates sobre o futuro destes eventos periódicos, materializados no programa paralelo -Ennials. A internacionalização da Trienal de Arquitectura de Lisboa é hoje um dado adquirido. Esperemos então por 2019. ◊