OPINIÃO

2016, um ano de grandes eventos culturais de Arquitectura

Por Inês Moreira
Arquitecta, curadora e investigadora Pós-Doutoramento (IHA-FCSH-UNL), Professora FBAUP

Instalação na Bienal de Arquitectura de Oslo 2016, After Belonging
©Istvan Virag

  

O ano de 2016 foi prolífico em grandes eventos culturais de Arquitectura, coincidindo no seu Verão e Outono as exposições dos principais. Mantém-se o epicentro em Itália – com a Bienal de Arquitectura de Veneza (15ª edição) e a Trienal de Milão (21ª edição) – ao qual se juntaram, na Europa, outros mais pólos mais recentes e que neste ano coincidem, apesar da sua bi ou trienalidade: a Trienal de Arquitectura de Lisboa (4ª edição), a Trienal de Arquitectura de Oslo (6ª edição) e a Bienal de Design de Istambul (3ª edição).

 

A consagração única por uma comunidade internacional congregada nos eventos de periodicidade longa tem-se vindo a pulverizar ao longo da última década (pensemos nas Expos, ou nas grandes feiras internacionais), respondendo a novos desafios. Desde logo, a velocidade com que a internet faz a divulgação imediata dos novos projectos arquitectónicos, das ideias às obras recém-construídas, alimentando o acesso voraz à informação. As novas obras expostas nas várias plataformas/revistas digitais especializadas como o archdaily.com ou o dezeen.com aceleram e esgotam o encontro com a obra, trazendo novos desafios às exposições de (ou sobre) arquitectura, pois expôr de dois em dois, ou de três em três anos, é incomensuravelmente lato, se comparado com a imediatez do online.

 

 

Contracção do tempo e simultaneidade do espaço

 

A contracção do tempo e a simultaneidade geográfica global advindas da aceleração dos media são paradoxais pois se, por um lado, potenciam o impacto público próprio das grandes bi/trienais, por outro, também trazem novas exigências que levam a repensar os eventos. Desde logo, cabe aos eventos garantir a necessária substância para competir com a divulgação online de obras e projectos de arquitectura, apostando no amadurecimento de programas que possam contribuir para a reflexão, além da velocidade da divulgação dos media – sendo que o seu tempo não é, também, aquele dos museus. Um dos desafios é a proposta de temáticas que possam gerar legado e conhecimento futuro, cativar o público e que estejam para além dos conteúdos pesquisáveis online, outro, é o modo de mediação e transmissão ao público, numa visita imersiva, diferente da consulta de um website. Se Veneza comissariada por Alejandro Aravena transparece a falta de tempo na maturação das relações entre trabalhos, ou nos parcos textos de mediação no Pavilhão de Itália e no Arsennale, aproximando a exposição de uma “mostra”, já a Trienal de Lisboa, pensada por André Tavares e Diogo Seixas Lopes, apresenta conteúdos elaborados com sofisticação ao longo do tempo, numa esfera distante daquela.

 

Numa perspectiva mais sistémica, não disciplinar, também as dinâmicas económico-culturais têm um papel na afirmação e investimento nos grandes eventos. A generalização da viagem curta e o fácil acesso a lugares periféricos, levam à afirmação de “novos” destinos que, no desafio do turismo low-cost, procuram atractores que os potenciem, e à sua regeneração urbana. Assim, num contexto cultural mediatizado (quase) em live-streaming, as cidades competem por atenção e os eventos disseminam-se geograficamente, apoiando-se os atractores culturais naqueles do turismo, afirmando novos destinos culturais, levando à atomização dos epicentros. Mesmo assim, Veneza será sempre Veneza.

 

Os discursos e conteúdos de cada um dos eventos vão marcando a sua identidade e especificidade relativa, atraindo também públicos com interesses cada vez mais posicionados e especializados, esta especialização é expressiva na inclinação da crítica e no fervor dos comentários. É de sublinhar a diferença entre a Trienal de Arquitectura de Oslo, que neste ano explorou questões de “pertença” na sociedade e de transitoriedade na arquitectura (na edição anterior questões relacionadas com materialidade e ciclos de vida) e a Trienal de Arquitectura de Lisboa que, neste ano, se orienta para questões de forma arquitectónica, autoria e para retomar o poder transformador da arquitectura a partir do desenho e da construção, num programa que se afasta da edição anterior, dedicada às práticas espaciais. Ou seja, em 2016, lado a lado, as duas maiores Trienais da Europa definem conteúdos que contrastam e exacerbam limites, surgindo como eventos que extremam os limites do campo disciplinar: focando processos de investigação e levantamentos espaciais nos quais a arquitectura é uma ferramenta epistemológica (sem que porém se concretize em projectos tectónicos ou formais), o outro focando-se na composição e na prática da arquitectura, regressando à forma e objectualizando os processos de construção (inclusivamente musealizando a documentação de trabalho, que surge como documento).

 

 

Panoramas

 

No seu conjunto, as grandes bienais e trienais continuam a oferecer uma leitura panorâmica alargada da produção, do pensamento sobre arquitectura e, cada vez mais, da diversidade de práticas espaciais e culturais que expandem o campo disciplinar da arquitectura. Mas, para essa leitura alargada e abrangente, é necessário considerar que as várias bienais têm programas, estruturas e características próprias. O que se traduz em projectos curatoriais cada vez mais específicos e em conjuntos de participações diversas, seleccionadas por salutares call for ideas, ou por convites direccionados pelos boards dos eventos. O caso mais radical desta especialização é a Bienal de Bergen, também na Noruega, que se afirma como plataforma de encontro e pensamento, afastando-se da exposição bienal (de arte) e estando agora próxima de um encontro internacional para a reflexão crítica sobre o contemporâneo. Este efeito panorâmico entre eventos, apesar das suas extremas diferenças, é explorado também na publicação de livros: a editora Lars Müller, em 2016, publica três dos eventos, oferecendo no seu catálogo editorial a síntese desta imagem panorâmica da arquitectura contemporânea retratada nas trienais de Oslo e Lisboa e bienal de Istambul.

 

Pensar sobre os grandes eventos culturais implica considerar também problemáticas inerentes à “bienalização” do sistema cultural, questão que vem sendo levantada a propósito da arte contemporânea. Desde logo, como vimos, no sistema cultural global, as bienais, além do seu valor cultural intrínseco, têm sido também estratégias de afirmação de cidades, pontuando-as no mapa internacional dos eventos globais. Para se tomar melhor noção da dimensão do fenómeno da bienalização, o site da Biennial Foundation (www.biennialfoundation.org) revela como se articulam e promovem as maiores bienais do mundo através de uma plataforma conjunta.

 

No campo mais específico da arte contemporânea, as bienais são dispositivos de afirmação de artistas, agentes e também de galerias, além de circuito de legitimação meritocrático – que reconhece, dá visibilidade e, nalguns casos, premeia obras – dos autores expostos, é também um potencial impulsionador do mercado, interferindo nos processos de aquisição e colecção por museus ou privados. Há uma repetição de autores seleccionados a circular entre eventos, impedindo a diversidade de conteúdos do sistema das bienais – este facto é distinto do que ocorre na Arquitectura. Já em 2016, foi publicado um artigo de opinião de António Guerreiro que introduziu em Portugal a urgência de pensar a bienalização, apontando a “síndrome de Veneza” como um dispositivo que associa ao “contemporâneo cultural, próprio da indústria do entretenimento e da banalidade do presente”, porém, a reflexão está por fazer, existindo, contudo, cada vez mais compêndios dedicados à categorização de bienais.

 

 

Bienais vs. Museus

 

No âmbito das bienais de arquitectura tem existido algum debate, não necessariamente crítico, mas ainda assim problematizador do fenómeno bienal/trienal, como as três sessões designadas “ennials” promovidas por/entre as três bienais e que se desenrolaram em cada uma das três cidades. Nos eventos inaugurais da própria Bienal de Veneza, em Maio de 2016, um dos eventos colaterais, organizado pelo New Museum de Nova Iorque, propôs um tema – Bienais vs. Museus – que, parecendo de senso-comum, toca questões fulcrais a 2016 pois com a hiper-profissionalização das bienais (dos tempos, modos de expor, autonomia curatorial e crescimento dos financiamentos), e alguma fragilização dos museus existentes (nos orçamentos, na falta de autonomia relativamente à administração, e na tentativa de diferenciação de “serviços”), a distinção dos diferentes papéis bienal/museu toma importância. Em Portugal os museus de arquitectura e a gestão de repositórios/arquivos é um assunto quente, a par das disputadas representações nacionais portuguesas fora do país.

 

Se as bienais são encontros culturais que expõe o seu próprio tempo, o agora, ou o tal contemporâneo problemático que Guerreiro refere, e os museus são repositórios de trabalho de autores e colecções, com responsabilidade publica, histórica e educativa, qual é a diferença (ou a sobreposição) do domínio de acção do evento efémero e aquele da instituição museológica? Deveriam as bi/trienais ocupar-se de um legado e ter princípios de continuidade, ou, pelo contrário, deveriam reinventar os seus formatos e apostar no efémero? Estas questões são generalistas, mas permitem-nos olhar um pouco mais de perto alguns aspectos que 2016 põe em evidência.

 

Depois da Trienal de Arquitectura de Lisboa de 2013 e a Bienal de Arquitectura de Chicago de 2015, a Trienal de Arquitectura de Oslo de 2016 (tal como a edição de 2013) adoptam abordagens baseadas em ferramentas não estritamente arquitectónicas para ler e disseminar as incertezas espaciais, urbanas, flutuantes e geográficas de hoje. Oslo não se compromete a divulgar autores ou objectos concluídos, no sentido inverso, apresenta relatos e processos em volta de casos complexos aos quais a arquitectura pode responder, ou nas quais se podem ler, questões de pertença, habitação e da vida num amplo ecossistema, que se apresenta em novos dispositivos, elementos e objectos maioritariamente criados para a Trienal. Assim, a OAT parece estar comprometida em testar e esticar os limites do campo. No sentido oposto, a Trienal de Lisboa em 2016 aproxima-se do conhecimento disciplinar e/ou do património que a constitui, propondo numa das suas exposições principais, “Obra”, com curadoria de André Tavares (comissário geral), uma exposição de investigação histórica, de carácter próximo do museográfico, com espólios e documentos históricos de proveniências diversas, numa lógica expositiva em linha com a programação museológica da Fundação Calouste Gulbenkian, onde é apresentada. Num sentido ainda distinto o museu Victoria and Albert alugou espaço e criou pavilhão dentro da Bienal de Veneza deste ano, para se expôr em representação perante públicos internacionais especializados, como os países.

 

 

Portugal

 

A par dos grandes eventos, em 2016, Portugal assiste ainda o aparecimento de novas instituições destinadas à apresentação e salvaguarda da arquitectura com ambição internacional, conjuntura nova relativamente ao tecido cultural tradicionalmente assente em três pilares – Ordem dos Arquitectos, Academias e Estado –, até aí mais focado em Portugal. A Trienal de Lisboa inaugura em simultâneo do novo Museu de Arte Arquitectura e Tecnologia, da Fundação EDP, dirigido por Pedro Gadanho, que se situa em vizinhança física da também especializada Garagem Sul do CCB, que também acolhe uma exposição da Trienal, numa estratégia tripla de potenciação de públicos e visibilidade internacional gerados pela inauguração tanto das exposições da Trienal, como do MAAT.

 

A cooperação entre instituições e eventos na potenciação do programa cultural da cidade leva a uma última questão que se colocará a Portugal com o boom do turismo: como calibrar um evento internacional entre discussão disciplinar de arquitectura, para os públicos especializados internacionais e nacionais, e as políticas de afirmação, divulgação e regeneração de cidade? Será possível um evento de arquitectura produzir leituras sobre a cidade intervindo, também, culturalmente nela?

 

Talvez a Trienal de 2019 possa ensaiar respostas, se, por um lado, a atractividade de Lisboa como pólo turístico deve ser considerada como incontornável motor de visibilidade – tanto para a Trienal como para Lisboa – é também de considerar que uma parte da disciplina da arquitectura se dedica ao pensamento crítico sobre o território, sobre o edificado e as cidades, além da leitura autoral ou objectual, e um evento de arquitectura pode reunir massa crítica e gerar conhecimento. Lisboa poderia beneficiar de um Think Tank que a Trienal pudesse oferecer, pensando sobre as suas problemáticas, o que poderia ser um desafio. ◊