OPINIÃO

Funchal, prevenindo o futuro

Por Luís Vilhena
Arquitecto e deputado da Assembleia da República pela Madeira

Quem chega de visita ao Funchal, deixa-se facilmente encantar por esta cidade à beira-mar plantada. O sol que realça a exuberância do verde, está quase sempre presente. E mesmo que chova, salvo raras exceções, não há de ser por muito tempo. A cidade, apesar de algumas cicatrizes que foram sendo feitas no seu centro histórico, não se encontra tão desfigurada como outras cidades por esse mundo fora, atropeladas pela velocidade desenfreada com que o séc. XX as apanhou. Além do mais, o turista que se fica pelo centro histórico, vê ao longe o casario que sobe pela serra acima sem conhecer de perto o triste descontrolo que é esse emaranhado de casas, ruas e veredas que foram acomodando milhares de pessoas que tiveram de construir a sua própria sorte à falta de alternativas. Se se deixar ir por uma levada 1 a meia encosta, a má impressão que terá no início, com o lixo deixado pela má educação de alguns cidadãos, ou com alguma construção plantada no sítio mais improvável, será apagada da memória após alguns minutos caminhando pelo verde luxuriante e as vistas sobre a baía.

 

O Funchal tem assim um encanto que mal se explica. Afinal é a cidade capital de uma ilha com várias camadas de história que, na fusão com a natureza se nos apresenta amável, algo exótica e com um carácter muito particular.

Será assim tão amável para os seus cidadãos? Duvido. E o seu carácter? Aquilo que a torna distinta de tantos outros lugares. Não estará em vias de se diluir na fantasia de querer ser 'moderna'? Tenho a certeza.

 

Timelapse da cidade do Funchal, com a evolução urbana entre 1984 e 2016
Timelapse da cidade do Funchal, com a evolução urbana entre 1984 e 2016

 

O paradigma de desenvolvimento que a cidade seguiu nos últimos 40 anos, conduziu-a a um lugar sem Norte, onde se apregoa um particular carinho pela Zona Velha e ao mesmo tempo se deixam aí construir obras desqualificadas, executadas sem qualquer critério; onde se criam roteiros turísticos de monumento em monumento, sem cuidar da arquitetura de acompanhamento, do 'ruído' visual deixado pelos letreiros vaidosos ou pelos fios amontoados nas fachadas; onde se anunciavam sistemas de park&ride e ao mesmo tempo se autorizavam parques na baixa da cidade; onde se anunciam novos instrumentos de planeamento urbano mas que se revelam pouco eficazes pois do papel à realidade encontram uma muralha feita de maus hábitos; nestes últimos 40 anos o Funchal foi vagueando sem uma ideia concreta do que queria ser, na vertigem de apanhar o comboio do progresso, esquecendo as suas tradições construídas ao longo de séculos, alimentado por dinheiros de fora e sustentado por uma economia que tentava conciliar os proveitos da construção civil necessária a colmatar deficientes infraestruturas, com a manutenção de valores locais essenciais para a qualidade do destino turístico que continua a ser, sem dúvida, um dos motores principais do desenvolvimento da Região.

 

Desenhar assim estes 40 anos corre-se o perigo do retrato não condizer com a realidade. É claro que durante este tempo foram também satisfeitas as necessidades de muitos cidadãos, na habitação, na educação, no bem-estar, na cultura, no desporto, etc. Fica, contudo, a sensação de que tudo poderia ser feito com outro sentido responsabilidade, com mais planeamento, com outra ideia de cidade.

 

E é sobre esta questão da 'Ideia' que é necessário insistir. Qualquer perspetiva que se desenhe sobre o futuro desta cidade nunca será mais do que um somatório de ações aleatórias, de investimentos avulso, senão houver um IDEIA forte que dê sentido a todas as transformações necessárias à qualidade de vida dos seus cidadãos e à construção de um destino que seja interessante visitar e revisitar.

 

É necessário por isso mudar o paradigma sobre o qual se deverá construir o Futuro do Funchal. Esta Ideia de que falo, deverá ser trabalhada tendo em conta alguns fatores essenciais:

 

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    1. O Funchal é uma cidade com mais de quinhentos anos de história. O seu Património arquitetónico e paisagístico é uma mais-valia com que nem todas as cidades podem contar. Os seus legados culturais, aliados ao clima e à proximidade do continente europeu, edificaram tradições e moldaram uma cidade com um carácter muito particular que deve ser tido em conta em qualquer estratégia de intervenção quer no seu centro histórico, quer na paisagem, quer na requalificação das suas zonas de expansão.

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  3. Antes de atuar é fundamental diagnosticar. Do centro histórico deverá ser feito um levantamento exaustivo, sobre quais são os valores essenciais à definição do seu carácter. Quais são os edifícios e outros elementos urbanos que necessitam de ser requalificados, quais o que se devem restaurar, quais os que permitem alterações e quais os que se devem retirar/demolir. Nas zonas de expansão será necessário um trabalho idêntico para saber como reordenar o caos e requalificar o espaço público, como otimizar a mobilidade dos seus habitantes e dotar certos sítios de melhores condições de urbanidade. Quanto à paisagem envolvente e à estrutura verde de acompanhamento em conjunto com as zonas verdes privadas, deverão ser alvo de um estudo dando-lhe a mesma importância que à estrutura edificada.

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  5. A dispersão é inimiga da vida urbana e da economia de uma cidade. Esta assunção é ainda mais real se considerarmos a orografia acidentada do anfiteatro por onde se espraia a cidade. Se alguma vez forem contabilizados os custos das infraestruturas e sua manutenção necessários a alimentar uma cidade construída serra acima à custa do alargamento de veredas para servir casas unifamiliares às vezes implantadas em sítios sem condições de habitabilidade, chegaremos à conclusão que os custos serão muito superiores aos que se teriam tido na construção de habitação coletiva concentrada em bairros mais propícios a uma vida urbana com mais qualidade de vida e as manchas verdes que têm vindo a desaparecer dariam outra cor à paisagem. É urgente por isso inverter este caminho que vai destruindo a paisagem como um valor de atratividade turística e bem-estar da população.

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  7. A cidade é um lugar de trocas. De troca de ideias, de bens e de conhecimento. A troca de ideias que promove as melhores soluções, a troca de bens que move a economia e a troca do saber e do conhecimento que valorizam e influenciam a cultura de um povo. Tudo isto acontece se o espaço público for cuidado e se os equipamentos públicos onde se processam essas trocas tiverem qualidade e forem bem localizados. Criar condições para que os cidadãos possam usufruir a cidade revela-se essencial para o germinar de uma sociedade livre, equitativa e que se vá superando todos os dias.

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  9. O turismo é hoje a razão desta cidade ter a dinâmica que tem sendo o sustentáculo direto ou indireto da sua economia. Partindo deste pressuposto, todas as ações que sejam tomadas na transformação da cidade precisam de ter em conta que o turista que se deve procurar atrair, não vem apenas à procura de sol enfiado num hotel com pensão completa a poucas horas de sua casa. Esse turista vem à procura de paisagens originais, de bom clima é certo, mas também à procura de atividades que completem a sua estadia em dias menos solarengos, que além da natureza possam disfrutar de uma cidade com história e lugares de qualidade, onde descansem o olhar enquanto se deliciam com uma gastronomia de bons paladares. E qualidade não significa luxo e opulência. Significa bom gosto, um serviço simpático e empenhado, significa autenticidade, respeito pela tradição e uma atuação contemporânea.

 

A mudança de paradigma é assim essencial para que a cidade tome um caminho diferente. A consciência dessa mudança deve ser feita quanto antes e já que estamos no meio de uma crise, poderá ser a altura ideal para o fazer. Contudo há estratégias necessárias à sua transformação que demorarão muito tempo até serem reconhecíveis. Muitas delas deverão traçar o seu objetivo a vinte ou mais anos. Mas o importante é que caminhe com um rumo traçado em vez de andar à deriva e ao sabor de vontades alheias longe do interesse público.

 

 

 

Hoje parece que de novo se chamam à atenção as situações pendentes, com principal gravidade sobre o tal fenómeno. A falta deste entendimento pelos responsáveis autárquicos que têm governado o Funchal, de que é preciso planear em vez de navegar ao sabor dos interesses económicos e da livre criatividade do cidadão, criou um problema grave nos arredores do Funchal – e para o qual o incêndio de 9 de Agosto de 2016 veio de novo levantar grande preocupação – o qual denominamos de ‘zonas altas’. Esta zona da cidade, que nos anos 80 começou a desenvolver-se à custa do aumento inesperado de população no Funchal, foi ocupada inicialmente com construções de génese ilegal ou onde, pelo menos, a Câmara Municipal fechava os olhos. Porque não teve a vontade, ou capacidade, de tratar o assunto providenciando habitação social para a camada da sociedade mais desfavorecida, o certo é que se gerou uma zona acima da cota 200, ao longo das linhas de festo ou nas encostas, que não oferece condições à população que aí vive, de urbanidade e mesmo de segurança em alguns casos e que é também um custo incalculável para todos os funchalenses em termo de infraestruturas, numa orografia adversa. Este problema que, aparentemente era um problema de poluição visual que escondia também a falta a de condições de habitabilidade de muito desse casario, revelou-se, no aluvião de 2010 e, recentemente, em incêndios que afetaram o Funchal, um problema que começou a preocupar os cidadãos.

 

O que fazer e como o fazer? Na verdade ninguém sabe ainda, embora haja quem tenha várias opiniões. Infundadas, claro. Infundadas porque, antes de atuar é preciso consentimento. Saber se um lugar consente que o transformem, saber o que as pessoas pensam do seu futuro ali, saber se estarão dispostas a mudar para melhor e para outro lugar. É preciso saber, antes de atuar, o que o território consente. E isso, mesmo com a crise instalada e alguma inércia no desenvolvimento urbano, própria para parar e pensar, mesmo assim, ainda nada foi feito. Estaremos à espera de uma nova catástrofe, ainda mais feia que a de Agosto passado? Espero que não. ◊

 

NOTA: Texto de 2011 que tenho publicado todos os anos nas redes sociais por altura do dia da cidade do Funchal. Revisto e aumentado.