CRÓNICA

Simultaneidade e acumulação profissional em Arquitectura

Por Miguel Costa

Arquitecto, Doutorando (ISA-UL), Docente (FBA-UP)

 

Atelier em ambiente doméstico
© Miguel Costa
Atelier em ambiente doméstico
© Miguel Costa

 

 

Debater a prática da arquitectura em Portugal significa, por vezes, tentar olhar simultaneamente alguns dos seus extremos: por um lado, a elevada qualidade da arquitectura portuguesa, que se reflecte nos inúmeros prémios, menções nacionais e internacionais; por outro lado, as dificuldades associadas à prática tão presentes nas disputas em torno da partilha dos actos próprios do exercício da profissão de arquitecto 1 , na entrada para o mercado de trabalho, no elevado número de arquitectos existentes, nas remunerações, nas horas de trabalho, ou na instabilidade e no desemprego. Esta é uma realidade que tem levado a mudanças forçadas de profissão ou à necessidade de acumulação de actividades, sendo que os recentes anos de austeridade e de condições “desfavoráveis” ao exercício da profissão continuam a guardar muitas histórias de engenho e resistência pouco reflectidas em dados estatísticos.

Embora as situações de acumulação de actividades ainda se encontrem pouco documentadas sabemos que têm também sido uma constante no panorama profissional da arquitectura em Portugal. Na realidade, sempre se trataram de situações muito fluidas e difíceis de mapear. Os dados mais recentes, referentes a 2012 2 , são poucos conclusivos na distribuição das actividades em acumulação. Mesmo nos dados mais concretos, obtidos em 2006 3 , onde se estimava que mais de metade dos arquitectos inquiridos acumulavam mais de uma actividade, estas encontravam-se distribuídas essencialmente por actividades ligadas à prática tradicional da arquitectura — desde a actividade por conta própria, a assalariados ou prestadores de serviços para outros arquitectos, funcionários públicos, etc. Adicionalmente, as actividades ligadas ao ensino, à investigação ou ao design de equipamento e mobiliário eram também consideradas como domínios integrantes da actividade em arquitectura, quer por extensão da actividade principal, quer por se encontrarem frequentemente integrados na própria actividade do projecto. E se, por um lado, no relatório de 2006, se salvaguardava que nem sempre estas extensões da actividade fossem fruto de necessidade, encontrando-se mais ligadas a uma vertente pedagógica e experimental da profissão, por outro lado acabaram gradualmente por contribuir para uma ideia de estabilidade e regularidade de rendimentos, principalmente durante o período de austeridade. 

Não obstante, passados estes anos onde muito se discutiu sobre a condição e o futuro da profissão e da arquitectura 4 , as expectativas de uma parte dos recém-licenciados relativamente ao seu futuro enquanto arquitectos ainda se distribui pela perspectiva estável e sólida do posto de trabalho (influências de um discurso profissional muito presente na geração dos seus pais e avós), no desejo de vir um dia a formar o seu próprio gabinete de arquitectura (seguindo as pisadas de familiares, amigos, ou arquitectos que admiram), ou numa perspectiva de arquitecto-autor, a partir da realização de projectos e obra construída (uma perspectiva também parcialmente estimulada pelos programas de ensino e pela massificação de referências visuais e monográficas a partir de redes sociais, publicações impressas e ciclos de conferências).

Contudo, não só o papel do arquitecto na sociedade tem vindo cada vez mais a ser questionado e reinventado, reforçando por isso a certeza que o arquitecto e a arquitectura podem ocupar uma larga diversidade de opções para além daquelas que tradicionalmente se encontram associadas ao exercício da sua profissão, como também a perspectiva sólida do posto de trabalho a longo prazo, tem vindo a mudar, conforme já tinha sido exposto em 2000 pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Essa perspectiva sólida, construída a partir da repetição da experiência e da interdependência entre a reprodução do capital e a solidez do emprego necessário à manutenção dos trabalhadores que o reproduzem, tem vindo a ser consecutivamente substituída por configurações mais “líquidas” do quotidiano do mercado laboral, ou seja, mais fluidas, dispersas e precárias a partir dos argumentos do curto prazo, da flexibilidade, e da reprodução de incerteza e instabilidade. Por conseguinte, Bauman sublinha as consequências a jusante, através da força desagregadora destes argumentos na individualização e na desunião em torno de um interesse comum, enfraquecendo a participação política, os laços sociais, a lealdade e o compromisso 5 . 

Deste modo, mesmo com os sinais optimistas de retoma económica, a oferta de arquitectos continua elevada, sendo que, nas suas transições para a vida activa, estes recém-licenciados irão continuar a ver-se confrontados com estas realidades plenamente conhecidas e debatidas. E são estas mesmas realidades que continuam a ser decisivas na permanência neste mercado de trabalho, mas cujos desfechos irão percorrer um vasto espectro de possibilidades: desde a concretização mais optimista das suas expectativas, ao abandono e mudança de profissão — de referir que, no estudo europeu realizado em 2016 6 , cerca de 1/3 dos arquitectos portugueses inquiridos apresentava dúvidas relativamente à sua continuidade na prática da arquitectura, reforçando assim os baixos índices de satisfação já constatados no estudo de 2014 7 , principalmente no que diz respeito a salários e qualidade de vida, dados estes que ficaram por analisar no estudo de 2016. 

Mas tem sido também neste contexto que diferentes lógicas de acumulação têm vindo a proliferar, a ramificar-se e, paradoxalmente, a contribuir também para a acumulação de experiência e conhecimento, construção de laços sociais e de diferentes compromissos profissionais, contribuições e efeitos que se estendem muito para além das relações de dependência com o trabalho remunerado ou produção de riqueza. Assim, em vez de se acentuar aqui o discurso mono-direccional sobre uma ainda inegável precariedade profissional, pretende-se também acrescentar diferentes perspectivas a partir do suporte e autonomia de uma prática mais resiliente, ou seja, se, por um lado, os anos de austeridade fizeram emergir diferentes possibilidades de trabalhar em arquitectura, por outro lado também influenciaram e acentuaram diferentes formas de trabalho a partir da simultaneidade e da acumulação, contribuindo tanto para uma maior acumulação e diversificação do conhecimento, como para a sua partilha e retransmissão a partir de uma larga diversidade de canais.

Efectivamente, já se tornou comum a acumulação de diferentes actividades assim como a não-exclusividade do trabalho em arquitectura, sendo que algumas das combinações mais habituais de acumulação se relacionam frequentemente com a prática de projecto. Por exemplo, arquitectos que trabalham por conta de outrem e que também exercem a sua actividade por conta própria através da execução de projectos particulares e da participação em concursos, muitas vezes trabalhando a partir de casa e em conjunto com outros colegas durante a noite e aos fins-de-semana; sem esquecer os colectivos formados por casais, onde tantas vezes o ambiente doméstico e familiar da casa funciona como extensão do ambiente profissional do atelier.

Mas, gradualmente, também outras formas de acumulação começaram a ganhar uma maior amplitude e expressão. Mais desassociadas das práticas tradicionais da arquitectura associam-se agora a uma constante reinvenção do que é ser arquitecto a partir de um vasto leque de combinações possíveis e autónomas que se vão ramificando e sobrepondo — da formação e ensino ao trabalho editorial, produção crítica e teórica, curadoria, investigação, cenografia, fotografia, ilustração, práticas espaciais efémeras ou produção 3D. Estas serão certamente algumas das actividades mais sonantes e, em muitos casos, misturadas também com outras actividades remuneradas, por vezes desvalorizadas ou menos reconhecidas entre pares, como a restauração, o turismo, o ramo imobiliário, ou o apoio a clientes, quer num balcão público, quer na vasta rede de call centers existente no país.

Sendo que nada disto é novidade, importa sublinhar como este sistema de combinações flutuantes e irregulares manteve e ainda mantém muitas práticas ligadas à arquitectura activas e com sucesso, permitindo deste modo alavancar novas autonomias profissionais dentro e fora das formas mais tradicionais da produção em arquitectura.

Muito longe de se apresentar como uma estrutura sólida de suporte e rentabilidade, esta dispersão de combinações não deixa de transportar consigo a flexibilidade de gestão de um maior ou menor número de actividades a partir da sua distribuição eficaz em diferentes camadas e horários. Por sua vez, como diferentes actividades exigem diferentes tempos de produção e diferentes prazos de resposta, também a irregularidade, a imprevisibilidade ou a ausência de remunerações acabam por ser orquestradas em simultaneidade em torno das inúmeras variações possíveis estendidas ao longo dos dias, semanas ou meses.

Na realidade, grande parte destas actividades intersectam-se a partir de um corpo de conhecimento comum que é a arquitectura e, mesmo na sua diversidade, tornam-se muitas vezes complementares entre si a partir dos seus temas e conteúdos, impulsionando-se e contaminando-se mutuamente. É também neste exercício de diversidade e contaminação que surgem novas oportunidades de reinvenção e reconfiguração das actividades 8 .

E mesmo nos casos mais afastados como nas actividades menos reconhecidas, exercidas completamente fora do âmbito da arquitectura, persiste a necessidade de uma fonte de rendimento que permite não abandonar a prática da arquitectura — são exactamente as condições líquidas do part-time, da flexibilidade de horários e das folgas rotativas, juntamente com a possibilidade de um contrato de trabalho, subsídio de refeição e de férias que propõem uma sensação de estabilidade ao mesmo tempo que impulsionam e funcionam como o motor oculto das restantes actividades em acumulação.

Ironicamente, a expressão portfolio worker popularizada pelo teórico e especialista em comportamento organizacional Charles Handy 9 não podia estar mais adequada à realidade de tantos arquitectos, neste caso através da gestão simultânea de diferentes empregos, de diferentes acumulações de actividades remuneradas e não-remuneradas (algumas enquanto fontes de rendimento, outras por prazer e ainda outras por estratégia), assim como através da criação de colaborações e parcerias com diferentes áreas e intervenientes.

É certo que se trata de uma reflexão sobre uma realidade ainda pouco detalhada, mas tendo em conta que cerca de 30 anos depois das observações de Handy esta ideia se foi progressivamente tornando mais global, é de prever que, numa contínua reinvenção de diferentes formas de trabalhar e a partir de diferentes actividades em acumulação, os arquitectos se continuem a reinventar, reforçando a necessidade de reformulações indispensáveis no percurso académico em arquitectura, assim como no posterior enquadramento profissional junto da Ordem dos Arquitectos.

Deste modo, perante as actuais condições do mercado de trabalho, continua a ser importante expor e reconhecer formas de trabalho que têm instrumentalizado e tirado partido desta realidade persistentemente líquida no exercício expandido da profissão de arquitecto. Se pensarmos que, em muitos casos, destas condições de trabalho depende uma família, percebemos melhor como a resistência de manter uma prática activa gravita entre a fragilidade e a vontade de continuar a contribuir para a solidez da profissão. ◊