ENSAIO

O Futuro é longe de Silicon Valley

Por Mariana Pestana

Arquitecta, Curadora

Western Flag (Spindletop, Texas), 2017, em Desert X, Palm Springs, por John Gerrard, 2019
Western Flag (Spindletop, Texas), 2017, em Desert X, Palm Springs, por John Gerrard, 2019

 

 

Por uma arqueologia em reverso 

Naquela que ficou conhecida como a sua teoria do acidente, o urbanista e filósofo Paul Virilio sugeriu que a invenção do navio foi também a invenção do naufrágio 1. Ou seja, que todas as “novas” invenções contêm em si possíveis consequências: acidentes que não poderiam acontecer caso a invenção não tivesse sido criada. Motivada por esta sugestão, e face à rapidez vertiginosa com que os desenvolvimentos tecnológicos se propagam, dediquei os últimos anos a visitar laboratórios de investigação em universidades, centros de “futuro” de empresas privadas e startups, estúdios de design e arquitectura, organizações governamentais e não governamentais. Numa espécie de arqueologia em reverso, procurei projectos que, de alguma forma, anunciam um futuro que está para vir. Mais do que o seu aspecto formal ou mesmo os materiais de que são feitos, interessa-me a visão que incorporam, os futuros que projectam, e a capacidade que têm para se espalharem rapidamente e se tornarem ubíquos 2. Penso que, ao revelar estas visões maiores, podemos olhar mais criticamente para alguns dos futuros que se nos apresentam como inevitáveis e procurar alternativas. Este texto confronta algumas destas visões de futuro dominantes, muitas das quais produzidas em Silicon Valley, com trabalhos de artistas e arquitectos de carácter crítico. Através de uma sequência de projectos, proponho um plano de acção em quatro partes: inicia-se com uma breve contextualização da magnitude do efeito das alterações climáticas no tempo presente e do papel da arquitectura e do design num novo paradigma ecológico; segue-se um exercício de revisão daquilo que consideramos enquanto progresso e as suas possíveis consequências planetárias; depois, convido a que duvidemos das soluções aparentemente “inevitáveis” que nos são oferecidas pelos grandes centros tecnológicos; finalmente, sugiro que se preste atenção às margens desses grandes centros, às periferias de onde emergem práticas alinhadas com um pensamento ecológico que dilui o binómio natureza/cultura e que se rege por um entendimento do mundo segundo assemblagens de fenómenos, espécies e materiais intimamente ligados entre si.

 

Projectar para um cliente planetário

Vivemos numa nova era geológica que alguns chamam Antropoceno. Inventado por Paul Crutzen no ano 2000, o termo atribui a responsabilidade do aquecimento global ao progresso tecnológico que começou com a invenção da máquina a vapor no final do século XVIII. Os valores de progresso e racionalidade científica que nasceram com o Iluminismo e se tornaram paradigmáticos quanto ao nosso entendimento do mundo são agora directamente ligados ao maior problema que enfrentamos como humanidade: as alterações climáticas. Ou seja, os valores que nos orientaram, que regeram a nossa forma de viver nos últimos 200 anos, estão em crise. Que outros valores e princípios poderão orientar-nos de agora em diante? 

Em 2018 foi publicado um censo da biomassa da vida no planeta Terra. Revela que a espécie humana representa uma pequeníssima parte da totalidade das espécies que formam o ecossistema global. Não obstante a sua pequenez na ordem maior das coisas, a espécie humana influencia mais de metade dos habitats de todas as outras espécies, contribuindo para a destruição do ambiente necessário à sobrevivência dos outros animais e plantas. E como todas as espécies estão relacionadas e interligadas formando um ecossistema global, ao destruir outros habitats, os humanos põem o seu próprio bem-estar em risco. Para assegurar o seu futuro no planeta, a espécie humana vai ter de mudar de paradigma. O design e a arquitectura do futuro deverão ter em consideração não apenas o bem-estar dos humanos, mas também o de todas as outras espécies. Cada novo projecto de design, cada nova obra de arquitectura, impactam muito além do cliente ou do contexto específicos. Na verdade, cada projecto deve ser hoje considerado na perspectiva de um cliente planetário, criado no contexto de uma rede complexa de relações entre coisas, lugares, matérias e espécies. Estima-se que, a manter-se o ritmo actual, 20 % das espécies do planeta terão desaparecido por volta de 2030 3. Nas últimas décadas, a taxa de extinção de espécies foi 100 a 1 000 vezes superior à da norma geológica, o que levou os biólogos a considerarem a possibilidade de uma “sexta extinção” desde o aparecimento da vida na Terra. A última extinção, a que dizimou os dinossauros, ocorreu há 65 milhões de anos. Isto significa que, nas próximas décadas, teremos de fazer face a alterações que afectarão o estado do planeta, tais como a subida da temperatura média. Tratam-se de alterações para as quais a espécie humana, com apenas 2,5 milhões de anos de existência, não está cultural ou biologicamente preparada 4. Tal cenário torna absolutamente imprescindível um novo comportamento da humanidade face à ecologia global em que se insere.

 

Rever noções de progresso

Em 1901, um colossal jacto de petróleo irrompeu de um local de perfuração em Spindletop Hill, um domínio constituído por um depósito subterrâneo de sal situado perto de Beaumont, no Sudeste do Texas, nos Estados Unidos da América (EUA). Atingindo uma altura superior a 40 metros e uma produção diária de aproximadamente 100 mil barris de petróleo por dia, o jacto tinha uma força nunca antes vista no mundo. Não tardou até que se desenvolvesse uma indústria em torno de Spindletop, de onde muitas das principais empresas petrolíferas da América, incluindo a Gulf Oil, a Texaco e a Exxon, são originárias 5. Num só dia, o Lucas Gusher, designativo com que foi baptizado em honra do engenheiro de minas que descobriu a jazida, produzia mais petróleo do que o somatório das restantes jazidas petrolíferas em todo o mundo. Hoje, os depósitos de petróleo estão esgotados e é essa paisagem deserta de Spindletop que serve de pano de fundo ao trabalho Western Flag, de John Gerrard (2017). A instalação de vídeo consiste numa simulação virtual da paisagem texana onde se vê um poste com uma bandeira de fumo negro pressurizado em perpétua renovação. Contra um cenário despovoado, a bandeira evoca uma imagem sublime. O denso fumo negro sopra num deslumbrante e hipnótico contínuo, como se a fonte nunca se esgotasse. Ao fazê-lo, espelha a inconsciência ocidental, porque, apesar de saber que o combustível fóssil é finito, o chamado mundo “desenvolvido” continua a explorá-lo como se não tivesse fim. Esta imagem estetiza desconfortavelmente o petróleo como uma estrutura de poder que serviu de combustível à expansão do empreendimento humano.

A ideia de que podemos continuar a “fazer” energia sem ter de pagar as consequências é especialmente visível naquele que é talvez o mais ambicioso projecto de engenharia em curso: Onkalo, o primeiro depósito de resíduos nucleares do mundo. Em construção na Finlândia, a estrutura pretende durar dez mil anos, o tempo que demora até que o lixo radioactivo seja desactivado. Um túnel de 450 metros de profundidade com uma extensão de 42 km, já escavado, conduz a uma sepultura onde o lixo será depositado e fechado durante milhares de anos. Espera-se que a estabilidade geológica da Finlândia proteja o combustível de catástrofes naturais e daquelas eventualmente provocadas pelo Homem no futuro. Mas como garantir que as gerações futuras vão respeitar esse desígnio? Conforme Susan Schuppli comparou, as pirâmides de Gizé construídas em cerca de 2560-2540 A.C. destinaram-se também a guardar materiais preciosos (os corpos faraónicos de reis e rainhas) e mesmo assim foram várias vezes invadidas e os seus conteúdos roubados 6. O acidente que seria provocado pela abertura de Onkalo (caverna, em finlandês) pode não acontecer no nosso tempo de vida. Mas, apesar dos procedimentos de segurança, sistemas de emergência e planos de contingência que certamente acompanham o projecto, esperar que nos próximos 10 000 anos não se dê nenhuma falha significativa é uma aposta arriscada. É por demais patente a arrogância com que se inventa um dispositivo tecnológico que pretende resolver o problema do lixo radioactivo literalmente empurrando-o para debaixo do tapete. Mais uma vez, constata-se a inconsciência dos países produtores de energia nuclear, onde sobressaem os EUA como o maior produtor e a China como o país com o programa de maior crescimento. 

Mesmo as energias mais “limpas” têm o seu reverso. Considere-se o império do sul-africano Elon Musk, o herói da sustentabilidade. A base da sua visão para a Tesla é o sonho dos carros eléctricos, sustentado pela ideia de uma giga-fábrica de baterias eléctricas. No entanto, estas baterias são feitas de lítio, que é extraído no Chile e na Bolívia. A Unknown Fields Division, uma unidade de investigação da Architectural Association School of Architecture, em Londres, liderada por Kate Davies e Liam Young, documentou esta realidade. No Verão de 2015, os dois investigadores deslocaram-se com os seus alunos às minas de lítio da Bolívia e ao deserto de Atacama (Chile) para explorar a infra-estrutura subjacente aos nossos sonhos de uma energia “limpa”. E descobriram que, por baixo do Salar de Uyuni, o mais extenso deserto de sal, está enterrada mais de metade das reservas de lítio do mundo inteiro. Esta substância é o componente principal das baterias, que servem para alimentar os nossos telemóveis, computadores portáteis e carros eléctricos. A documentação da expedição Lithium Dreams (2015) organizada por Davies e Young revela o processo de extracção através da evaporação: um oceano retalhado de lagos salgados, cuja água vai sendo drenada e transferida de lago para lago todos os meses, com a coloração a sofrer alterações à medida que a concentração de lítio aumenta. Os trabalhadores das minas monitorizam este processo de 15 meses que se desenvolve nos tanques. O trabalho desenvolvido pelos arquitectos-investigadores põe-nos perante a evidência de que mesmo as utopias da mais “limpa” das energias dependem de actividades de extracção e têm consequências drásticas na paisagem em termos de exploração material, económica e de recursos. Traça-se, assim, uma geografia relacional que interliga o consumo das baterias no hemisfério Norte com a extração de recursos no hemisfério Sul. 

 

Duvidar de Silicon Valley

Costuma pensar-se em Silicon Valley como o lugar em que o futuro está a ser criado. Foi lá que as grandes empresas de hoje, como a Google, a Apple ou o Facebook, cresceram. As universidades (Stanford, Berkeley) oferecem currículos recheados de ciência e tecnologias emergentes e as inovações têm lugar logo ali nos seus laboratórios, para depois serem prototipadas nas muitas startups que montam sede na Califórnia e rapidamente exportadas globalmente. No paradigma digital as ideias e os dados circulam a uma velocidade avassaladora, uma vez que o mundo está efectivamente “ligado” através de cabos transatlânticos e satélites. As baterias de lítio carregam dispositivos electrónicos que quase instantaneamente ligam pessoas de um lado ao outro do mundo. Neste sentido, uma invenção que tem lugar em Silicon Valley pode fazer-se sentir no mundo inteiro num abrir e fechar de olhos. Considere-se a aplicação Airbnb e a rapidez com que transformou a habitação e mesmo o mercado habitacional no mundo inteiro. Esta velocidade de transmissão e contágio carrega com ela a possibilidade de as tecnologias se desenvolverem e espalharem tão rapidamente que entram na nossa vida sem nos darmos conta. Antes mesmo de podermos avaliar as consequências do turismo Airbnb nas cidades, adoptámos aquele modelo de hospitalidade de tal forma que parece não haver retorno possível. Por tudo isto torna-se urgente olhar com uma perspectiva crítica as tecnologias que se nos apresentam, procurando antecipar as possíveis consequências que acarretem. 

 Um aspecto fundamental do design e tecnologia “silicon valley” é a capacidade que têm para se tornarem globais e ubíquos. Isto tem que ver com o próprio modelo de pensamento instigado nas empresas e até em universidades como a Singularity, a que se chama moonshot thinking. Conforme me contaram os empresários da startup Made In Space e alumni daquela universidade, os projectos querem-se disruptivos, escaláveis e com velocidades de crescimento alucinantes. Esta empresa startup criou a primeira máquina de impressão 3D a gravidade zero. A bordo da Estação Espacial Internacional, a máquina que tem o tamanho de um micro-ondas está a uso, perfeitamente funcional, e permite que se “imprimam” pequenas ferramentas como chaves de fendas ou quaisquer peças de substituição necessárias. Mas, quando eu visitei o estúdio deles no parque de investigação da NASA na Califórnia, havia já uns protótipos de máquinas muito maiores, capazes de “imprimir” vigas e outros elementos construtivos. O futuro que a Made In Space está a desenhar não é portanto apenas o conforto dos astronautas a bordo. Conforme me confirmaram, querem construir fábricas ao largo da estação espacial, a flutuar na atmosfera, em órbita. 

No laboratório do Facebook em Somerset, no Reino Unido, conheci a equipa de engenheiros liderada por Andy Cox que estava a trabalhar no drone Aquila, um avião revestido a painéis solares, sem tripulação, desenhado para sobrevoar áreas do mundo desconectadas da internet e funcionar como um pequeno satélite, facilitando a ligação. Conforme sugeriu o CEO da empresa, Mark Zuckerberg, quando afirmou que o acesso à internet deveria ser um direito humano universal, a ambição do Facebook é “conectar” o mundo inteiro 7. No futuro que o Facebook está a criar, toda a gente tem acesso à internet. Mas neste futuro, muito provavelmente, todo o acesso é controlado por uma só empresa. Num contexto em que o Facebook revelou tratar os dados dos seus utilizadores como activos valiosos passíveis de serem vendidos, em que se expuseram relações entre esta empresa e outras como a Cambridge Analytica que usava dados de utilizadores para aplicar estratégias “psicográficas” de modo a influenciar decisões de voto, esta visão de futuro revelou-se especialmente soturna. 

 Porque nos sentimos tão vulneráveis face a estas invenções? Porque o alcance global destas empresas abre possibilidades em que o acesso à tecnologia é distribuído, mas o poder não. Os produtos que se nos oferecem como inovações são criados por empresas e CEO muitas vezes comprometidos com formas pouco éticas de gestão de capital global, aventureiros da privatização. O controlo do futuro segundo o modelo Silicon Valley pertence a um número reduzido de pessoas (em grande parte homens, jovens, engenheiros) que não foram eleitos democraticamente. 

Na sequência dos navegadores do século XVI ou dos industriais do século XIX, os empreendedores do século XXI tratam os mares como obstáculos a ultrapassar com auto-estradas de fibra óptica, a terra como fonte de extracção mineira, e a atmosfera como novo território a conquistar por meio de satélites de comunicação e captura de dados e, até, unidades fabris de produção de materiais. Estes projectos entendem o mundo como uma estrutura relacional de territórios numa perspectiva mercantilista. Consideram o impacto de cada projecto num contexto global, numa lógica de comodidade e lucro. Em contraste com os futuros produzidos na Califórnia, devemos exigir alternativas. Alternativas que envolvam a partilha dos mecanismos de poder e que se libertem das noções de propriedade, divisão e extracção, que caracterizam ainda hoje um pensamento cartesiano ocidental. 

 

Um futuro inter-espécies

O filósofo Michel Serres escreveu extensivamente sobre a capacidade humana de construir e explorar a natureza, por meio das ciências e das tecnologias e, por consequência, de modificar o destino global da espécie humana e afectar a evolução de todas as outras espécies vivas do planeta. E revelou que a crise ambiental contemporânea também é uma crise cultural dado o modo como a cultura ocidental pensa e interfere na natureza 8. É urgente reconsiderar a universalidade dos valores que têm regido o pensamento ocidental. Ao mesmo tempo que na Europa e nos EUA se explorava carvão, e mais tarde petróleo, como se não houvesse fim, outras geografias estabeleciam relações diferentes com a natureza. Um possível caminho futuro passa por revalidar estes modos de pensamento, indo buscar inspiração a modelos de relacionamento entre humanos e outras espécies praticados noutras geografias, nomeadamente no hemisfério Sul. E, se o problema é essencialmente cultural, o trabalho de artistas, designers e arquitectos ganha neste contexto um papel fundamental no sentido de revelar novas perspectivas acerca das relações vigentes entre cultura e natureza e apontar possíveis caminhos alternativos. 

Na fronteira petrolífera e mineira da Amazónia Equatorial — uma das regiões da Terra mais biodiversas e ricas em minerais —, actualmente sob a pressão da expansão dramática de actividades de extracção em larga escala, foi desencadeada uma série de processos judiciais que fizeram história ao levarem a floresta a tribunal e assim defenderam os direitos da natureza. Um dos casos levados a tribunal tornou-se paradigmático. Refiro-me ao processo accionado e ganho pelo povo indígena de Sarayaku, com base na sua concepção da floresta enquanto entidade viva, a qual não pode ser destruída porque está intimamente ligada a muitos outros lugares, animais e pessoas 9. Segundo a documentação levada a cabo pelo arquitecto Paulo Tavares e a artista Ursula Biemann em 2014, foram as múltiplas dimensões da floresta tropical enquanto entidade física, jurídica e cosmológica que justificaram o seu reconhecimento como sujeito de direito. Este reconhecimento vai de encontro ao pensamento de Michel Serres que alerta para a necessidade de os indivíduos reverem o “contrato social primitivo”, defendendo que só com um Contrato Natural, em que a natureza passa a ser pensada como um sujeito de direito, haverá um equilíbrio na relação do homem com o planeta. 

Esta oposição inerente ao binómio cultura/natureza é revista pela artista colombiana Carolina Caycedo no modo como interroga as conotações positivas atribuídas à construção de barragens ou minas enquanto indicadores de “progresso” ou “crescimento”. Na sua perspectiva, estas construções perpetuam estruturas coloniais de exploração e extracção. Caycedo trabalha com comunidades indígenas afectadas por estes projectos e documenta os seus gestos de resistência como actos heróicos. Para ela, os verdadeiros inovadores são as populações locais que resistem à construção de barragens e, por isso, trabalha com essas comunidades para dar visibilidade ao seu activismo e modo de entender o rio enquanto entidade com direitos próprios, alternativo às perspectivas mercantilistas das empresas de energia hídrica. O seu corpo de trabalho revela que as infra-estruturas de natureza extractiva, como barragens ou minas de larga escala, afectam não apenas as massas de água e os organismos que nela vivem, mas também as redes sociais de pessoas que circundam aquelas construções. Através de ensaios de vídeo, narração, desenhos, performances, acções directas, colagens e esculturas feitas de redes de pesca tradicionais e objectos recolhidos durante o trabalho, a artista revela indícios de modelos utópicos — protagonizados pelas comunidade locais — de habitar o mundo. 

Para além destes efeitos imediatos de estruturas arquitectónicas ligadas directamente à exploração e extracção de recursos (como as barragens), sabe-se hoje que os edifícios e a indústria da construção são responsáveis por 36% da energia global consumida 10. Isto porque todos os sectores da economia dependem de um fluxo constante de materiais, num ciclo que começa com a extracção de matérias-primas naturais e continua em sucessivas etapas de transformação industrial, transporte, montagem, manutenção e desmontagem 11. A indústria dos materiais de construção é uma das mais poluentes. As estimativas indicam que na União Europeia as construções são responsáveis por 30% das emissões de CO2 12. Face a esta situação, é fundamental que qualquer projecto de arquitectura examine a forma como se relaciona com a paisagem em que potencialmente causa impacto, sendo esta paisagem o terreno imediato a essa intervenção, mas também o conjunto longínquo de minas, fábricas, florestas, estradas, ar e água que são afectados, transformados pela sua existência. 

A Island House in Laguna Grande do Office for Political Innovation, um atelier sediado em Madrid e Nova Iorque e dirigido por Andrés Jaque, considera o “existente” na sua dimensão de biodiversidade. Trata-se de uma casa em construção em Corpus Christi, no arquipélago de 50 ilhas de Laguna Grande, na costa sul do Texas. Num habitat onde múltiplas espécies se tornaram ameaçadas devido às alterações climáticas, ao aumento progressivo da acidez da água da lagoa e à poluição resultante das plataformas petrolíferas vizinhas, a estrutura proposta recolhe e preserva a água da chuva e, através da mediação de sensores no solo, borrifa água de modo a diluir a toxicidade e combater a seca. Apesar de ter sido encomendada como habitação unifamiliar, a Island House in Laguna Grande não é especificamente concebida para os humanos, sendo antes construída como uma arquitectura que pode fortalecer a diversidade ambiental de uma das maiores concentrações de ilhas-barreira selvagens do mundo. 

SKREI é a designação de uma oficina de projecto, construção e investigação artística baseada no Porto. Reunindo profissionais multidisciplinares, a sua prática integrada quer redefinir os métodos de construção correntes de modo a reflectir novas necessidades ecológicas. Um dos projectos da SKREI chamado Biogas Power Plant foi apresentado na exposição Eco-Visionários: Arte e Arquitectura Depois do Antropoceno no MAAT (2018) pela primeira vez em contexto museológico. Até aí era uma máquina em uso no atelier, um projecto em curso que investiga a possibilidade de criar unidades que tornem casas e condomínios auto-suficientes do ponto de vista energético. A máquina combina recolha de água e a gestão dos resíduos com produção de energia, utilizando os subprodutos das habitações humanas a fim de gerar biogás suficiente para alimentar todas as necessidades de um ambiente doméstico. Neste cenário, a sobrevivência é assegurada de forma individual, através da transformação dos comportamentos humanos no dia-a-dia. 

Neste momento, a SKREI está a manufacturar tijolos de cânhamo, a fibra da planta canábis. Estes tijolos respondem aos três regulamentos fundamentais da construção — acústica, incêndio e térmica — e, em termos ambientais, permitem a construção de betão com um balanço negativo de dióxido de carbono. Isto porque o cânhamo é um repositor de oxigénio e tem a capacidade de restruturar o solo fazendo reposição de carbono e azoto. A SKREI adaptou as misturas que foram ensaiadas noutros contextos, como a Bélgica ou a Espanha, no sentido de criar um elemento de preenchimento para fachadas, lajes e cobertura. O impacto é substancial uma vez que os elementos de preenchimento representam cerca de 90% do edificado (10% sendo as estruturas e outros). Para produzir os tijolos, a oficina construiu as suas próprias máquinas de produção manual, respondendo à necessidade de criar materiais de construção ecológicos usando os meios disponíveis à sua pequena escala enquanto atelier. Da mesma forma, e dada a pouca produção de canábis no país, a oficina está a impulsionar duas cooperativas e a formar uma associação de agricultores de cânhamo, criando procura e estabelecendo pontes entre produtores e construtores. Interessa-lhes a relação entre a arquitectura e o território: para a SKREI, cada projecto tem uma dimensão ambiental e portanto exige um processo complexo de investigação e produção. Uma obra já não pode ser considerada na sua dimensão de site-specificity imediata porque hoje sabemos que o seu impacto não se limita a uma paisagem ou lugar estritamente circunscrito. Qualquer nova intervenção interfere com uma miríade de lugares e paisagens em simultâneo.

A consciência ecológica que temos hoje permite-nos reconhecer certos efeitos da indústria de construção, e por isso é urgente exigir à arquitectura uma dimensão crítica de auto-reflexão disciplinar 13. Uma arquitectura crítica, ou autocrítica, é aquela que tem a coragem de desafiar a cultura do seu tempo e do seu contexto e reinventar relações entre pessoas, materiais, tecnologias e paisagens. Avaliar criticamente as origens dos seus materiais, os ciclos de produção das tecnologias que aplica, o transporte das peças que a constituem, as espécies e matérias em que impacta, talvez se nos afigure como uma pressão demasiada sobre uma disciplina que sofre para afirmar a necessidade da sua existência. Mas, num futuro já previsivelmente não muito distante, em que matérias e espécies não “humanas” usufruam de direitos universais, talvez a arquitectura se possa afirmar como disciplina e prática absolutamente essencial. 

O futuro começa muitas vezes à margem dos grandes centros de produção económica. Cabe-nos, agentes culturais, não apenas revelar os acidentes que podem advir das visões de progresso dominantes, mas também identificar os princípios ou começos menos óbvios que revelam formas inovadoras de ver o mundo e constroem perspectivas originais sobre a realidade em que se encontram. Na minha profissão, enquanto arquitecta, o trabalho resulta muitas vezes na execução de exposições, que entendo como espaços de reflexão crítica após longos processos de investigação. Esses espaços oferecem oportunidades para reconsiderar o potencial da nossa experiência no tempo presente. É esse potencial de hoje que vai ter efeitos futuros. Nesse sentido, entendo a prática curatorial como um instrumento de transformação social. O filosófo Louis Marin escreveu sobre a utopia não como um lugar ou destino mas como uma viagem processual: uma actividade crítica através da qual se pode neutralizar o mundo real por via de o imaginar ao contrário. Há projectos de arte e arquitectura que têm a capacidade de nos fazer repensar as possibilidades que se nos afiguram. Face à ameaça asfixiante do aquecimento global — um fenómeno de tal forma incompreensível na sua dimensão que Timothy Morton lhe chamou um “hiper-objecto” — pode parecer que, como disse com humor Paola Antonelli, nada há a fazer senão desenhar um final feliz para o certo e inevitável término da Humanidade 14. Mas isto seria uma ilusão geracional. Como mostram os milhares de adolescentes que encheram as ruas nos últimos meses, há muito quem acredite que uma inversão de paradigma é possível, e desejável. Mas longe de Silicon Valley. ◊