CRÓNICA

Tomás Saraceno

A Arquitectura da próxima era geológica

Por Fabrícia Valente

Arquitecta, Mediadora cultural

 

Exposição Tomás Saraceno. Um Imaginário
Termodinâmico, MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa, 2018
© Bruno Lopes / Cortesia Fundação EDP
Exposição Tomás Saraceno. Um Imaginário
Termodinâmico, MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa, 2018
© Bruno Lopes / Cortesia Fundação EDP

 

 

A arquitectura contemporânea recorre  frequentemente ao tema da sustentabilidade como  um chavão de novidade, associado à urgência  de mudança que o imediatismo das catástrofes ecológicas exige. Se é verdade que a Arquitectura tem de se posicionar perante tal flagelo e, para isso, repensar materiais, técnicas de construção e novos modelos  de habitar as cidades, também o é que a questão  da sustentabilidade não pode ser encarada como  um tema do nosso tempo, mas sim inerente à disciplina. Da importância do motivo a um chavão comercial,  o sustentável é tão indispensável como falacioso. 

Por todo o mundo desenvolvido economicamente existem empresas, laboratórios e ateliers que apresentam projectos que pensam numa arquitectura actual que possa contribuir para o desenho de um futuro melhor, numa perspectiva ecológica. Os edifícios são avaliados pelas suas respostas energéticas e anunciados publicamente enfatizando-se o serem mais ou menos “verdes”. Neste artigo apresentamos a obra de Tomás Saraceno, que nos fala do agora, que não traduz sede  de mudança vendável mas que avista a impossibilidade da permanência e que, por isso, se destaca pela ambição de projectar possibilidades para um futuro que se deseja mais distante do que a comunidade científica anuncia:  o Aeroceno  como a próxima era geológica.

Desde a chegada da máquina a vapor que a velocidade  do progresso tecnológico tem tido uma ampliação  quer fascinante quer assustadora. A marca que  o homem tem deixado no nosso planeta assume uma dimensão que já não passa despercebida ao público comum. O discurso das alterações climáticas já não pertence somente à esfera da Ciência e da Política. Escolas, telejornais, campanhas mundiais anunciam-nos diariamente um futuro preocupante. Cientistas avisam-nos da possibilidade de estarmos na era  geológica mais curta de sempre: o Antropoceno.

Tomás Saraceno é o arquitecto e artista argentino 1 (actualmente sedeado em Berlim) que já não dedica os seus estudos para solucionar a regressão da pegada ecológica na nossa  realidade actual. As suas  obras são protótipos de futuras possibilidades  de habitar o mundo. Este anúncio parece afirmar um  posicionamento visionário e utópico mas está também assente em ensaios que não passam despercebidos  a várias áreas científicas.

O trabalho de Tomás Saraceno é ambicioso, transdisciplinar, desafiante. O seu posicionamento, enquanto artista, permite-lhe não ter de se reger  pelas balizas políticas, sociais e culturais que  a arquitectura impõe. Ideológica por natureza, poética por consequência, a obra de Saraceno coloca-nos  num limbo entre a inquietude da incerteza e o fascínio  das imagens/instalações que nos atraem. 

A sustentar o seu acto criativo, existe uma plataforma online que apresenta o Manifesto Aerocene. Para o seu desenvolvimento contribuem arquitectos, engenheiros, antropólogos, sociólogos, filósofos, biólogos, matemáticos, músicos e especialistas de outras áreas do conhecimento que participam nesta avidez de futuro. 

Mas afinal em que assenta essa era futura, esse projecto de um novo modo de habitar, essa nova noção de sustentabilidade? 

“Uma nova era. Sem fronteiras e sem combustíveis fósseis. Enquanto as indústrias  baseadas em combustíveis fósseis começam a colonizar outros planetas, o ar, essa interface entre nós e o Sol, está nas mãos  de poucos e nunca para ser colocado em perigo. As emissões de carbono espalham-se pelo ar, partículas flutuam e entram nos nossos pulmões; ao mesmo tempo, a radiação eletromagnética que envolve a Terra marca os ritmos do capitalismo digital, na era do aquecimento global.  O Aerocene aspira a um tempo de sensibilidade  interplanetária, trabalhando por uma nova ecologia de práticas, imaginando como seria respirar se a economia se libertasse de sua  dependência dos combustíveis fósseis.” É assim que  este manifesto começa por nos apresentar esta intenção de transformação, esta possibilidade de reformatação.  

Na Bienal de Veneza de 2009, este autor despertou  a atenção com a apresentação de um projecto que viria a desenvolver ao longo de vários anos, denominado Cidades-Nuvem. Desde esse momento que as suas obras desafiam o público a imaginar a possibilidade de se promover “um espaço aéreo livre de regulamentações militares e burocráticas, um livre acesso à atmosfera, este último envelope da Terra, moldado pelo jogo  das forças do Sol, a gravidade e a massa terrestre”. 

Tomás Saraceno questiona a nossa responsabilidade para  com o futuro, para com o planeta e não se limita a lançar questões, ensaia respostas e anuncia: “A maneira  de entrar nessa nova era é um balão de aerossol, uma porta que abrimos coletivamente (Do It Together, DIT) para as regiões atmosféricas. Ele é acionado pela pura força do ar e pelo calor do Sol, atestando que é possível subir no ar simplesmente dependendo de uma diferença de temperatura de dois graus entre duas massas de ar. Assim, ele chama a imaginar uma nova cosmologia vermelha, cujo centro é o Sol, essa estrela cuja fonte  de energia de toda a vida é hoje transformada em ameaça pelas nuvens negras de carbono que se acumulam  na atmosfera, absorvendo os raios do sol e aquecendo  o nosso planeta todos os dias um pouco mais.” 

O Homem, que tem trabalhado afincadamente na ambição de conseguir voar e em todo o desenvolvimento tecnológico que daí advém, emerge com esta solução numa leitura que contraria todo esse progresso. Sem combustíveis fósseis e dependentes exclusivamente  das condições climatéricas, onde obedecemos  às matrizes geopolíticas? “Estes corpos de aerossol  auto-estabilizadores flutuam de maneira única, incomparável a qualquer planta ou animal suspenso  no ar. Uma vez inflados com o ar, eles são capazes  de se elevar no céu e flutuar no ar apenas pela ação  do sol que aquece o ar que eles contêm. Em suas viagens de aerossol, eles flutuam seguindo as correntes de ar (…) convidam-nos a repensar os limites construídos pelos humanos, a questionar o poder das instituições nacionais de decidir quem tem o direito de passagem  e as decisões políticas que afetam dramaticamente sujeitos humanos e não humanos em situações precárias. Tornando-se nômade do ar, não mais Homo economicus, mas Homo Flotantis, está dando atenção  aos ritmos planetários e consciente de viver com outros humanos e não-humanos. O Homo Flotantis aprendeu  a flutuar no ar e flutuar de acordo com o vento”.

As esculturas de Tomás Saraceno dão corpo a estes conceitos que nos parecem tão abstractos. Sob a forma de esferas, de materiais ora absorventes, ora reflectores de calor, mergulhamos em hipóteses de espaços habitáveis que desafiam a forma como fomos educados  a construir, contrariado a lei da gravidade.

Com corpos suspensos, levitantes, cria possibilidades de diálogos, de acumulações, de agrupar verticalmente ou em formas mais moleculares estes novos “ninhos”. Da inversão da ideia de móbil de Alexander Calder  a imagens constelares, são várias as identidades  que estes novos “urbanismos” assumem, em jogos  de equilíbrios e dependências. E se a maioria das suas obras se apresentam a nós como formas escultóricas,  o seu arrojo passa também por nos desafiar  a experimentar um kit (mochila transformável em balão) lançado oficialmente durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas em Paris em 2015, que o website anuncia como “ferramenta pessoal para exploração atmosférica movida a energia solar: kit inicial oferecendo uma nova maneira de sentir o ambiente”.

Sabemos que os desafios do habitar derivam também para os desafios do comunicar e são muitas as suas peças onde o corpo e o som nos conduzem a experiências espaciais surpreendentes, criando diálogos improváveis e ousadas traduções. O aparentemente lúdico das suas exposições é um pretexto para levar os espectadores das suas obras a uma tomada de consciência, a um alerta, a uma aceitação de que os modelos actuais se estão a esgotar e que é preciso investir noutras soluções. São exposições-manifesto que nos imploram experimentação mas que, em simultâneo, nos colocam em compassos de espera. Escalas onde o nosso corpo habita e escalas que estão no domínio da maqueta, impossibilidades que os espaços interiores dos museus impõem em relação à atmosfera, trajectórias que ajudamos a desenhar de forma aleatória e que não  sabemos como poderiam traduzir-se em padrões viáveis. 

Da experiência de duas exposições de Tomás Saraceno  em 2018: Um Imaginário Termodinâmico no MAAT, em  Lisboa, e On Air no Palais de Tokyo, em Paris, percebemos  que este arquitecto/artista tem explorado caminhos físicos e conceptuais que nos permitem uma diversidade de leituras e experiências que nos envolvem, estimulam e surpreendem já muito para além das flutuações anunciadas em Cloud Cities, que apresentou no museu Hamburger Bahnhof, em Berlim, no ano de 2011. 

As experiências tornam-se cada vez mais exigentes, quanto a sua investigação se torna mais complexa. As estruturas arquitectónicas que apresenta são de descrição difícil, como são exemplo os últimos trabalhos que desenvolve, onde homem e aranha constroem ambientes e não somente habitats, onde  já não só do artista e do espectador dependem  os resultados formais. Que papel primordial tem  a aranha? Que parte do trabalho fica por controlar?  De que novas colaborações depende o futuro? 

No atelier de Saraceno, mais de 600 m2 são dedicados  à sua colecção de teias de aranha, que vai construindo  e deixando construir, em referências assumidas  às estruturas tensionadas desenvolvidas por Frei Otto ou pelo arquitecto japonês Shigeru Ban que procurou, no seu pavilhão para a Expo 2000 em Hannover, formas de vida económica e ambientalmente minimalistas. “O Aeroceno advoga por um direito interespecífico à mobilidade de acordo com fontes de energia elementares, e mesmo com outras atmosferas não-terrestres, livre de fronteiras subliminares  e expandindo a área crítica de qualquer forma de vida que precisa de ar para viver.” É assim que o Manifesto Aerocene continua a declarar as intenções deste trabalho, que nos coloca em territórios híbridos e desconhecidos para um futuro alarmante. ◊