Os filmes: reverberações das representações nacionais

Por Alexandra Areia
Arquitecta, Doutoranda ISCTE-IUL
Julho 2016

As representações nacionais são como um andor que se leva a passear pela aldeia durante as festividades: colocam-se os santos da paróquia num pedestal, adorna-se tudo com exuberantes arranjos e, posto o andor nos ombros, faz-se circular para que todos o possam admirar. Recolhida porém a procissão e desmanchado o andor, pouco fica do dito além das memórias de quem o viu passar. No caso das representações, terminado o evento e desmontada a exposição, o que delas persiste que permita, ao longo do tempo e já com algum distanciamento, reconstituir novamente o seu significado? Ficam os catálogos (nos casos que efectivamente culminaram em publicações) que, apesar de se esgotarem facilmente durante o acontecimento, é possível localizar exemplares que vão sendo cedidos às bibliotecas, embora de forma bem menos sistemática do que seria desejável. Já as páginas na internet dificilmente perduram porque ninguém fica para as manter quando a festa acaba – caso de “Homeland” (2014) e “Lisbon Ground” (2012), cujos websites estão inactivos. Os materiais cenográficos, assim como as lindíssimas maquetes feitas de propósito para a exposição, são provavelmente arrumados e votados ao esquecimento numa cave qualquer. Já as produções audiovisuais, pelo menos as resultantes de colaborações com outras áreas artísticas, sempre vão gozando de alguma autonomia fora do meio arquitectónico (mesmo quando não editadas em DVD, é sempre possível chegar a elas através dos artistas e cineastas que as realizaram). De todos estes artefactos, os filmes são aqueles que acabam por ganhar maior vida própria, fazendo estender e prolongar o efeito das representações nacionais muito além do evento que lhes deu origem – como reverberações que perduram e a qualquer momento é possível revisitar, trazendo para o presente os discursos e posicionamentos críticos que marcaram as diversas presenças da arquitectura portuguesa em eventos internacionais.

 

Still de "Vizinhos"de Cândida Pinto – Bairro em Haia: Siza com Basem Saiegh
Still de "Vizinhos"de Cândida Pinto – Bairro em Haia: Siza com Basem Saiegh

 

O caso da actual representação portuguesa na Bienal de Veneza – Neighbourhood: Where Alvaro meets Aldo, com curadoria de Nuno Grande e Roberto Cresmascoli – e da série “Vizinhos” [ver crónica] que a acompanha, realizada pela jornalista Cândida Pinto, é nesse sentido bastante paradigmático: os quatro documentários que compõem a série, com cerca de meia hora cada, além de projectados em permanência na exposição, passaram também na televisão (SIC Notícias), estão agora acessíveis no website da estação televisiva (que corre menor risco de ficar inactivo tão cedo) e poderão ainda vir a ser montados num único filme para exibição em salas e até para concorrer a festivais de cinema (à semelhança do que aconteceu com “Copan”, outra reportagem de Cândida Pinto sobre o famoso edifício de Oscar Niemeyer em São Paulo). Ao ganharem assim autonomia de exibição e uma escala de difusão mais alargada, estes filmes permitem que a representação nacional ultrapasse o seu próprio carácter de acontecimento efémero e altamente especializado, trazendo um retorno imediato para o país e envolvendo toda a sociedade no debate sobre a arquitectura portuguesa – tratando-se de uma iniciativa com apoio estatal, este esforço em tornar o evento mais abrangente e inclusivo é, a todos os níveis, louvável. Mas mais do que isso, “Vizinhos” é um produto em clara sintonia com os tempos conturbados que se vivem actualmente – particularmente na Europa – e não terá sido por acaso que, desta vez, os curadores optaram por convidar uma jornalista para os realizar.

 

 

O tema da Europa já havia sido protagonista de uma outra representação nacional – “Europa, Arquitectura em Emissão”, para a 7ª Bienal de São Paulo em 2007 (inicialmente concebido para a Trienal de Arquitectura do mesmo ano) – do qual resultou também a encomenda de um filme, “Arquitectura de Peso” de Edgar Pêra, e cuja abordagem não poderia ter sido mais distinta da de “Vizinhos” de Cândida Pinto. Tratavam-se porém de outros tempos: o país acabava de passar uma década de próspera actividade económica, haviam-se feito enormes investimentos em obras públicas e a profunda crise que surgiria anos depois ainda não se fazia sentir, embora se pressentisse que a bolha iria acabar por estourar. Por coincidência, ou não, esta representação foi também comissariada por Nuno Grande (desta vez em conjunto com Jorge Figueira) e a escolha de Edgar Pêra (espécie de “enfant térrible” do cinema português) para a realização de um filme sobre arquitectura portuguesa é já bastante representativa das intenções dos comissários, que pretendiam “mostrar o ‘fôlego’ que Portugal tomou para se aproximar da respiração europeia, a partir do final dos anos 80”. Edgar Pêra escolhe por sua vez Nel Monteiro (sim, o cantor “pimba”) para funcionar como porta-voz das angústias do povo, e faz rodar todo o filme em torno de um tema do repertório cantor (que ostenta o singelo título, e refrão, de “Puta Vida Merda Cagalhões”, em alusão aos milhões de euros gastos em obras públicas). Num misto de realismo e surrealidade (a que o cinema de Edgar Pêra sempre nos foi habituando), “Arquitectura de Peso” consiste no registo audiovisual de quatro grandes projectos nacionais (CCB, Expo98, Estádios do Euro 2004 e Casa da Música) sobre os quais são projectadas diversas imagens de arquivo de telejornais da época, colocando em confronto, sempre com muita ironia, a arquitectura dos edifícios com os discursos de políticos envolvidos nestas obras – deixando para a posteridade imagens como a de António Vitorino projectado na pala do Pavilhão de Portugal (a curvatura da pala distorcia a forma da sua cabeça, dando-lhe um ar de extraterrestre) enquanto assegurava que a Expo98 abriria na data prevista.

Por outro lado, “Paisagens Invertidas”, uma das primeiras encomendas de um filme (neste caso ao fotógrafo Daniel Blaufuks) para representar a arquitectura portuguesa lá fora – na 5ª Bienal Internacional de Arquitectura de São Paulo em 2003, com Jorge Figueira e Ana Vaz Milheiro como comissários – é como que o reverso desta medalha. Realizado apenas uns anos antes de “Arquitectura de Peso”, não é um país de eventuais excessos arquitectónicos que surge retratado neste filme: “Paisagens Invertidas” é ainda o reflexo de um território largamente desqualificado, que se vê subitamente confrontado com a aparição de novas, e delicadas, peças de arquitectura. A Faculdade de Arquitectura do Porto, de Siza Vieira, é o primeiro dos nove edifícios captados no filme, que, segundo a sua narração inicial, “representam um panorama sintético da nossa paisagem, permitem mostrar a arquitectura portuguesa numa relação dinâmica com a realidade.” Este filme regista a arquitectura numa certa transitoriedade: o foco não está tanto na sua forma construída mas antes nos vazios que esta estabelece, nos interstícios que surgem entre volumes, nas frestas que se rasgam nos edifícios, e que permitem que a vida lá fora entre e os contamine, ao mesmo tempo que a devolvem novamente, transformada, para o mundo exterior – “são paisagens invertidas, imergem de uma forma quase transitória, em movimento, como aparições”. E qual o melhor dispositivo, que não as imagens em movimento para comunicar o carácter mais fugaz e imaterial da arquitectura?

 

“No Place Like: 4 casas, 4 filmes” na 12ª Bienal de Veneza em 2010 © Leonardo Finotti, cortesia TAL
“No Place Like: 4 casas, 4 filmes” na 12ª Bienal de Veneza em 2010 © Leonardo Finotti, cortesia TAL
“No Place Like: 4 casas, 4 filmes” na 12ª  Bienal de Veneza em 2010 © Leonardo Finotti, cortesia TAL
“No Place Like: 4 casas, 4 filmes” na 12ª Bienal de Veneza em 2010 © Leonardo Finotti, cortesia TAL

 

Mas a representação nacional que mais assumidamente explorou o valor intrínseco dos filmes, enquanto mecanismos de representação e de comunicação da arquitectura, foi “No Place Like: 4 casas, 4 filmes” – comissariada por Julia Albani, José Mateus, Rita Palma e Delfim Sardo para a 12ª edição da Bienal de Veneza em 2010 – e que logo no texto de apresentação lança a questão: “Como mostrar, então, estas casas senão através de filmes?”. De facto, o cerne do projecto expositivo desta representação são 4 filmes encomendados a três artistas plásticos e a um cineasta sobre 4 projectos de casas dos arquitectos: Filipa César filmou a Bouça de Siza Vieira, João Onofre as 2 Casas em Santa Isabel de Ricardo Bak Gordon, Julião Sarmento a Casa Candeias de Carrilho da Graça e João Salaviza a Casa na Comporta de Aires Mateus. À semelhança do recente documentário de Cândida Pinto sobre o bairro da Bouça, o filme de Filipa César, com o título “1975” (que remete para o período turbulento do SAAL e que coincide com o ano de nascimento da realizadora) evoca também o lado mais humanista da arquitectura de Siza Vieira. Contudo, em “1975” nunca aparecem pessoas – é um filme constituído por um único plano, um longo travelling que atravessa o bairro e em que os espaços surgem sempre desocupados – mas a dimensão humana faz-se sempre sentir, subtilmente, através da presença de objectos do quotidiano deixados pelos moradores e da forma fluida como se passa dos espaços da intimidade para o exterior, para o espaço público, e se volta a entrar outra vez, noutra casa, noutra vida. Através de dispositivos narrativos muito simples, os 4 filmes assumem um grande valor plástico, apresentando a arquitectura na sua essência mais fundamental de forma e espaço, um pouco alheados até ao contexto e às circunstâncias que ditaram a sua construção – no caso de Filipa César, todo o processo tumultuoso do projecto da Bouça é apenas revelado através de pequenas, mas eficazes, subtilezas: no título do filme (“1975”), na fotografia da época da construção com um grupo de moradores (que é a imagem com que o filme termina), na mensagem telefónica de Alexandre Alves Costa que, em poucas palavras, parece condensar tudo o que aquele bairro passou (desde as terríveis críticas nos jornais, à bomba que explodiu na sede do SAAL). 

As representações nacionais são sempre mais do que meras mostras de arquitectura: encerram um pensamento crítico (pelo menos tem sido essa a norma que tem pautado até agora) e constituem reflexos vitais dos ares dos tempos em que vão sendo produzidas. Neste artigo foram referidas quatro representações (São Paulo em 2003 e 2007, Veneza em 2010 e 2016) do qual resultaram projectos fílmicos e todos eles protagonizaram, com maior ou menor relevo, projectos de Siza Vieira (sem dúvida, a sua arquitectura é a que mais vezes é “levada a passear” por eventos internacionais) – mesmo assim, estes filmes não poderiam ser mais diferentes entre si. O que isto poderá indicar é, por um lado, que cada representação se traduz numa identidade muito singular, acabando por, no seu conjunto, funcionarem como importantes marcos dos diferentes momentos históricos da arquitectura portuguesa (tornando-se por isso fundamental preservar e sistematizar toda a informação relativa a estes eventos); e por outro lado, que o convite se estende a outras áreas artísticas para que, a propósito da realização de um filme, se reflita também sobre arquitectura (quase sempre confinada ao seu próprio círculo de debate), acabando por se traduzir em visões renovadas e mais desprendidas da disciplina. Enquanto reminiscências de representações nacionais, estes filmes acabam por desfrutar de uma certa intemporalidade e proporcionar (eles mesmos e cada um à sua maneira) mecanismos de leitura alternativos, e bastante peculiares, da própria cultura arquitectónica portuguesa – cujo legado, os filmes ajudam ainda a transmitir e a perpetuar. ◊