OPINIÃO

Um olhar sobre o desenvolvimento urbano a partir dos últimos pisos ou o que é feito das Utopias?

Por Ana Jara e Lucinda Correia
Arquitectas Artéria Arquitectura
“Enquanto o direito  de propriedade for o fundamento do edifício social, a classe mais numerosa e mais estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos.”
Thomas More, Utopia

Numa Lisboa em transformação a arquitectura joga um papel fundamental: motivada por novos investimentos de grande escala, cresce a demanda de projectos para uma cidade que oferece uma nunca antes vista concentração de imagens concretas de um futuro próximo. Os arquitectos respondem a esta demanda e aproveitam a onda profusa de oportunidades proporcionadas pela reactivação do mercado imobiliário. Mas quais são as possibilidades de produzir arquitectura para além da ideia de progresso em curso? E para pensarmos sobre o futuro da cidade qual é, hoje, a importância das utopias?

 

O caso sobre o qual nos debruçaremos – Lisbon Skyline Operation – é uma proposta do atelier Artéria 1 que nasceu de uma reflexão a um convite para integrar a Representação Oficial Portuguesa na Bienal de Veneza 2 de 2014. O tema era a reabilitação urbana e a cidade Lisboa. Olhávamos então para os prédios de habitação colectiva de Lisboa para pensar com eles novas formas de reabilitação da cidade. Detectámos os impactos da crise nos condomínios – a unidade mínima na organização social da cidade – e construímos, a partir daí, uma estratégia de reabilitação urbana. A ideia partiu da estrutura legal existente dos prédios de rendimento cujos últimos pisos são ‘áreas comuns’ 3. Assim, este regime de propriedade permitiu-nos imaginar que os últimos pisos podem representar uma mais-valia que poderia ser optimizada com benefícios para o condomínio e para o próprio edifício. Procurámos espaços na formulação legal e desfiámos possibilidades para este estrato (de cidade) de propriedade colectiva. Verificámos que estes espaços, em Lisboa, permaneceram intactos (a novas formulações de uso) durante o século XX e perguntávamos em 2014: será este o lugar para fundar uma casa lisboeta para o século XXI? Uma casa projetada para ir ao encontro dos interesses sociais, ambientais e económicos e assente em premissas colectivas, nomeadamente o interesse público. Uma casa que consiga inverter o ciclo de degradação da cidade histórica. A incubação do projecto passou por dois estudos de caso ainda em curso – no Bairro Azul e em Arroios, respectivamente com tipologias de sótão e cobertura plana – como provas de conceito. A partir deles fixámos um território de actuação tentando desbravar a complexidade do fenómeno urbano: das teias (antropológicas) das relações de vizinhança até à moldura legal que molda a construção da cidade. Procurámos saber o que se passa neste estrato da cidade, levantando hipóteses para desenhar uma possível visão de conjunto. Imaginámos um território, uma última camada aérea da cidade, para projectivamente conjecturarmos este espaço alvo de acções, de legislação e políticas públicas específicas. A tentativa foi libertadora.

 

 

Três estudos a partir de fotografias
© Artéria
Três estudos a partir de fotografias
© Artéria

 

 

Mas pensar uma Lisboa futura, para além das alterações em curso subjacentes à lógica do mercado livre e global, parece fugir-nos à medida que as alterações urbanísticas se vão sucedendo a ritmo constante e uma nova ordem se consolida assente nos inabaláveis direitos de propriedade. Neste tempo da cidade os investimentos sucedem-se numa construção possível que cresce perigosamente num sentido único. Enquanto o Skyline se vê povoado de vertiginosas gruas voltamos à nossa operação urbana: o Lisbon Skyline Operation propõe-se conceber um devir de uma cidade singular a partir de dentro, da morfologia, dos recursos disponíveis, explorando paralelos entre o olhar da arquitectura e a lente da antropologia. O Programa BIP/ZIP 4 – que apoiou a primeira fase desta ideia – tem sido um contra-ciclo micro-gerador de uma atitude mais experimental na escala local. Inscreve-se na cidade enquanto programa que promove um olhar integrado sobre a complexidade social, económica, ambiental e cultural do fenómeno urbano – apresentando-a como um mapa em aberto. Respondemos ao desafio pensando urbanisticamente. Este programa tem permitido a construção de outros olhares sobre a cidade com o contributo de colectivos de arquitectura. E este diálogo com um programa público permitiu uma imersão no contexto urbano em que se reflectiu sobre a própria definição e limites do objecto de estudo/intervenção convocando um olhar sustentado para construir e programar a sua produção. Teve por base as metodologias de investigação-acção, em que o projecto emerge desta relação estabelecida entre os arquitectos e o terreno, simultaneamente espacial, relacional e temporal.

 

 

Inventário de coberturas possíveis
© Alunos do 4º ano/ Serviço Educativo LSO/ Escola EB Nº1 de Lisboa/ Ano lectivo 2014/2015
Inventário de coberturas possíveis
© Alunos do 4º ano/ Serviço Educativo LSO/ Escola EB Nº1 de Lisboa/ Ano lectivo 2014/2015

 

 

Hoje são os planos de negócio e os estudos de viabilidade financeira que sustentam o desenvolvimento urbano. E se a Economia desenvolveu os seus instrumentos para participar na construção da cidade, a Arquitectura pode também reeinventar o seu papel público. Como pode a arquitectura (e os arquitectos) imaginar-se para além das evidências provocadas pelo sistema? Como podem os arquitectos provocar novas formas de intervir no território, na cidade, no bairro? Qual a importância de se ir inventando projectivamente outros futuros possíveis? Se a arquitectura portuguesa das últimas décadas não tem convivido com a utopia, esta reflexão sobre outras formas de gestão urbana explora a necessidade de uma cultura projectual mais projectiva (utópica?), para entreabrir espaços, trabalhar possibilidades e resgatar um outro espaço crítico para a prática. E para repensar a cidade qual é hoje a importância das utopias?

 

Revisitando o percurso do Lisbon Skyline Operation procurámos abrir campo a uma nova hipótese projectiva: se por um lado defendemos a pertinência de um projecto enraizado numa dada realidade social, por outro convocámos a utopia para desenvolver uma perspectiva para além do status quo instalado. E inflectir, posicionar, engendrar, debater para abrir campo a outras possibilidades. Quando o sonho do capitalismo parece abarcar toda a produção de espaço enquanto ‘valor de troca’ 5, talvez o desejo de liberdade das utopias seja um caminho para divergir das posições do sistema liberal e resgatar o ‘valor de uso’ do espaço urbano.

 

Quando observamos uma prática demasiado regulada e com formulações pré-estabelecidas e que menospreza o seu impacto. Quando somos impossibilitados de propor outros processos produtivos e outras formalizações como resposta a realidades concretas. Será que no entrelaçar da realidade e da utopia poderemos projectar para além do previsto? Será que os programas políticos e a legislação poderiam reflectir as possibilidades projectivas da própria arquitectura? Todas estas questões serviram para construirmos a estratégia do Lisbon Skyline Operation que resultará tanto mais, quanto menos se debruçar sobre novas formas construídas em coberturas, mas se se focar na abertura de novas possibilidades de uso e alteração das coberturas lisboetas que restitua um equilíbrio na vivência da cidade. ◊