CRÍTICA

Exposição A Lisboa que Teria Sido

Uma visão sobre a necessidade de mudança

Por Paula Melâneo
Arquitecta e editora

Ao contrário do que inicialmente se poderia pensar, esta não é uma exposição de projectos utópicos. Os projectos seleccionados não representam novas ideologias civilizacionais nem fantásticas soluções ficcionadas que revolucionariam o modo de viver na cidade. A Lisboa que Teria Sido integra um conjunto de propostas concretas e tangíveis que procuraram solucionar problemas em momentos específicos da evolução do território urbanizado da capital portuguesa (talvez à excepção do projecto de urbanização da Margueira, de Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, em 49 hectares de terreno anteriormente ocupado estaleiro da Lisnave, às portas de Lisboa). São aquelas que não foram escolhidas em concursos; ampliações arquitectónicas previstas que acabaram por não ser executadas; ou estudos e planos urbanísticos mais ousados, que se revelaram demasiado ambiciosos, tendo a cidade evoluído num crescimento mais “orgânico”. Os programas da encomenda reflectem as vontades políticas, as respectivas respostas projectuais e técnicas são mais ou menos visionárias e as escalas são muito diversas: vão do equipamento e infraestruturas, ou edifícios isolados, à escala do bairro ou de malhas urbanas alargadas.

 

 

Vista da exposição com pintura a óleo do projecto de Fernando Silva para o Parque da Liberdade (1900), Museu de Lisboa
Vista da exposição com pintura a óleo do projecto de Fernando Silva para o Parque da Liberdade (1900), Museu de Lisboa

 

 

Os comissários e historiadores António Miranda (Museu de Lisboa) e Raquel Henriques da Silva (FCSH – Universidade Nova de Lisboa) organizaram a exposição segundo zonas “críticas” e eixos determinantes para o crescimento da cidade e por isso alvo de inúmeros estudos e projectos – zona ribeirinha, as praças do Rossio, da Figueira e Martim Moniz, o eixo Avenida da Liberdade/Parque Eduardo VII e determinados acessos a Lisboa. Explicam que esta exposição, preparada durante 3 anos, abrange uma cronologia de 500 anos e junta cerca de 200 peças de projecto, tendo por base os arquivos da Câmara Municipal de Lisboa e do Museu de Lisboa, – e que foi sendo complementada com outros arquivos como o da Fundação Calouste Gulbenkian ou o do atelier de Carlos Ramos. Como imaginamos, é impressionante o espólio municipal de projectos de arquitectura e urbanismo não realizados – uma história que não foi escrita mas que está, apesar de tudo, documentada e arquivada.

 

Um importante factor de “insucesso” destes projectos pode também estar associado à veiculação da informação feita a partir dos órgãos de comunicação social, ao fazer um claro direccionamento da opinião pública. Este facto não foi esquecido na exposição, onde se apresentam páginas de jornais de época (o que poderia mesmo ser motivo de outra pesquisa), com textos e imagens dos projectos, onde é muitas vezes perceptível a intencionalidade política.

 

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Lisboa sempre se reflectiu numa imagem de capital pobre – ou de pobre capital. Um país de poucos arquitectos, onde alguns estrangeiros vieram colmatar necessidades e onde, muitas vezes, foi um corpo técnico de engenheiros, alguns da área militar, que executou importantes planos de arquitectura e urbanismo. Falta de dinheiro, visão, estratégia e até competências parecem ter sido problemas recorrentes.

 

Esta exposição mostra-nos que a Lisboa que conhecemos hoje e que tanto queremos preservar é também resultado de projectos inacabados, crescimento espontâneo, de carências várias, da incapacidade de responder à mudança planeada e não o de uma cidade de crescimento programado, regrado e de grande coerência urbanística e histórica.

 

Já no século XVI, época de grande afazeres comerciais e maiores posses, o renascentista Francisco de Holanda levantava críticas à falta de infraestruturas e de monumentalidade arquitectónica da cidade no ensaio de 1571 “Da Fábrica Que Falece à Cidade de Lisboa”. Mas como poderia a cidade oferecer fontes monumentais se nem suficientes chafarizes de abastecimento de água possuía?

 

A razia provocada pelo terremoto de 1755 trouxe uma nova oportunidade para a cidade se engrandecer. Pela decisão política de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que se rodeou de diversos técnicos, engenheiros, arquitectos e urbanistas, como Manuel da Maia, Eugénio dos Santos ou Carlos Mardel, a reconhecível arquitectura pombalina veio estabelecer-se na Baixa de Lisboa, com uma nova grandiosidade urbana, principalmente na zona do Terreiro do Paço. A eficácia de projecto, conjugada com as exigências de rapidez e economia, traduziu-se em rigidez geométrica, ortogonalidade de arruamentos e frentes “normalizadas”. Mas não nos esqueçamos que a arquitectura pombalina foi também criticada na sua época e mais tarde pelos arquitectos oitocentistas de formação nas “Beaux-Arts”, até chegar às palavras críticas de Artur Portela ou dos arquitectos modernistas como Cassiano Branco. Como referem os comissários, “até muito recentemente, considerada soturna e sem grandeza” – uma opinião que parece ter-se modificado radicalmente nos últimos 20 anos.

 

Em consequência disso, em 1934, a Câmara Municipal abriu um concurso para repensar a monumentalidade do Rossio. Os projectos de “remendo”, a que responderam, por exemplo, Carlos Ramos e Cottinelli Telmo, não tiveram efeitos práticos e fazem-nos hoje sorrir ao olharmos essas propostas.

 

 

Proposta de requalificação da Praça do Rossio, Carlos Ramos, 1934, tinta-da-china e aguada s/ papel, colado em madeira
Proposta de requalificação da Praça do Rossio, Carlos Ramos, 1934, tinta-da-china e aguada s/ papel, colado em madeira
Proposta de melhoramento estético do Rossio, perspectiva, Cottinelli Telmo, 1935, tinta-da-china s/ papel, Museu de Lisboa
Proposta de melhoramento estético do Rossio, perspectiva, Cottinelli Telmo, 1935, tinta-da-china s/ papel, Museu de Lisboa
Proposta de requalificação da Praça do Rossio, M. Rocha Castilho, 1934, lápis e aguarela s/ cartolina (MC.DES.4391)
Proposta de requalificação da Praça do Rossio, M. Rocha Castilho, 1934, lápis e aguarela s/ cartolina (MC.DES.4391)

 

 

O século XIX trouxe o desejo de aproximação a outras capitais europeias, principalmente com um olhar atento à arquitectura de Paris ou Viena, trazendo também outro projecto polémico: a destruição do Passeio Público, o primeiro grande jardim público na zona dos Restauradores, para dar lugar à Avenida da Liberdade, o boulevard levado a cabo por Ressano Garcia nos anos 1870-80. Um eixo, ele próprio, repleto de propostas não-realizadas como a extensão do Hotel Vitoria de Cassiano Branco ou outras ocupações do lote do cinema São Jorge, elaboradas por Cassiano Branco e Raul Lino.

 

 

Três propostas para o lote do actual cinema São Jorge de Cassiano Branco, Raul Lino e Fernando Silva
Três propostas para o lote do actual cinema São Jorge de Cassiano Branco, Raul Lino e Fernando Silva

 

 

Durante o século XX houve uma incrementação do número de arquitectos nacionais que permitiu dar resposta à expansão da cidade ao longo de novos grandes eixos viários e em torno de grandes praças que ainda hoje conhecemos, como o Marquês de Pombal, a Avenida Fontes Pereira de Melo, o Saldanha ou a Avenida da República. A exposição dá-nos a conhecer possibilidades de densificação no edificado da praça do Marquês de Pombal e diversas propostas para estender a Avenida da Liberdade sobre o Parque da Liberdade (Parque Eduardo VII). Este Parque foi objecto de um enorme conjunto de estudos, iniciando-se com um projecto de Henri Lusseau, e entre os quais encontramos os de Ventura Terra, de inspiração parisiense, ou os fantásticos desenhos do atelier de Cristino da Silva, de 1930, onde perspectivas aéreas nos dão a perceber as novas dimensões simbólicas das políticas nacionais que se instalam. A verdade é que nem a actual configuração, de Keil do Amaral, projectada na década de 1940, está concluída, faltando-lhe no topo, entre as 4 grandes colunas, o Palácio da Cidade.

 

 

Vista do núcleo Parque da Liberdade – actual Parque Eduardo VII
Vista do núcleo Parque da Liberdade – actual Parque Eduardo VII

 

 

Também é nesse século que a mobilidade se torna num problema a resolver. A arquitectura do ferro permite pensar pontes aéreas que nivelem as subidas e descidas das colinas, como a “avenida aérea” que ligaria S. Pedro de Alcântara ao Campo de Sant’Ana à Graça. A banalização do uso do automóvel é também sintomática no urbanismo: propõem-se túneis que perfuram as colinas lisboetas para descongestionamento do trânsito, como o que ligaria a praça dos Restauradores à Almirante Reis – segundo o Plano Director de Étienne de Groër e o estudo de Faria da Costa–, ou uma via rápida e grandes nós viários para o espaço do anteriormente referido do Parque da Liberdade – por José Luís Cruz da Silva Amorim e José Lima de Franco–, de um futurismo datado (e falhado).

 

 

Túnel que ligaria os Restauradores à Avenida Almirante Reis, Luís Cristino da Silva
Túnel que ligaria os Restauradores à Avenida Almirante Reis, Luís Cristino da Silva

 

 

Com grande pertinência e actualidade, esta exposição traz importantes reflexões para pensar a(s) cidade(s) nos nossos dias. Face a ingénuas nostalgias ou falsos interesses históricos que hoje se avultam, deparamo-nos nesta exposição com realidades muitas vezes pragmáticas e resoluções que são necessárias tomar em momentos precisos. Observamos as ideias disruptivas que determinados planos se propunham implementar, onde se percepciona que grandes áreas deveriam ser arrasadas com vista à introdução de melhorias, como é o caso do desaparecimento do Passeio Público, um jardim que se justificou desactualizado no seu desenho, ou a demolição da parte baixa (e “histórica”) da Mouraria, num desejo de modernização que dá lugar ao Martim Moniz, uma praça que ainda hoje apresenta diversos problemas de relação com o tecido urbano envolvente. Confirmamos também que há problemas recorrentes, como a resolução da relação da cidade com o rio, na sua frente ribeirinha, a baixa densidade do edificado e uma enorme resistência em construir em altura, ou a resolução de problemas de mobilidade e do intenso tráfego automóvel.

 

 

Proposta para a zona do Martim Moniz
Proposta para a zona do Martim Moniz

 

 

Se defendemos hoje uma reabilitação íntegra da cidade, temos de pensar que a cidade tem vindo a ser planeada segundo um conjunto de ideias e directivas que se consubstanciam em função dos seus habitantes. Olhando actualmente para a renovação urbana e arquitectónica da cidade, parece que apenas se procuram respostas imediatas às necessidades relacionadas com o turismo, com modos temporários de habitar a cidade e um mercado imobiliário altamente especulativo e que pouco se concentra nas demandas dos lisboetas – uma cidade renovada e dinâmica “para inglês ver”.

 

Por estas razões esta é sobretudo uma exposição que fala das possibilidades de mudança, abrindo campo para o questionamento e “descrença”, ou até mesmo ruptura, face a determinados valores históricos ou “patrimoniais” que hoje parecem dar-se como incontestáveis – demonstra-nos a volatilidade das opiniões e das “classificações”. ◊

 

 

O Pavilhão Preto do Museu de Lisboa, nos jardins do Palácio Pimenta, acolhe A Lisboa que Teria Sido até 18 de Junho. A exposição integra a programação de um ciclo de conversas e um catálogo que estará disponível em breve.