EDITORIAL

Centros Nevrálgicos: transformações em Lisboa e Porto

Por Paula Melâneo e Inês Moreira

As cidades estão em transformação e os seus efeitos são facilmente comprováveis numa curta deslocação pelos seus centros, seja no impacto dos seus resultados como nas dificuldades e interrupções que os processos de obra criam no dia-a-dia. A regeneração e a reabilitação tornaram-se motivo de conversas de café e de notícias quotidianas que abordam os novos usos, novas possibilidades de negócio e a recepção dos visitantes estrangeiros, bem como nas novas preocupações com propriedade, gestão de imobiliário e acesso à habitação, temas que parecem hoje redefinir muitas das vidas dos portugueses. A arquitectura, o urbanismo e o imobiliário são pontos sensíveis dos centros das cidades e estão nas preocupações com, e sobre, a vida dos portugueses nesta segunda década do século XXI.

 

A regeneração urbana está em curso em Lisboa e no Porto, focada essencialmente na transformação dos seus centros em plataformas preparadas para acolher (novas) pessoas, novos usos e novos negócios. Após décadas de abandono do seu edificado e de esvaziamento progressivo dos seus centros, o turismo de estadia curta de uma classe média internacional propelida pela descida dos custos das viagens aéreas e aparecimento das companhias low-cost, veio catalisar uma transformação que seria difícil antever há 10 anos – pensemos que o PDM do Porto, publicado em 2006, não previa ainda a importância que o turismo viria a ter.

 

Após a dotação dos sistemas de transporte público, os espaços públicos de Lisboa e Porto beneficiam agora de ambiciosos projectos públicos, como a reestruturação das frentes ribeirinhas do Tejo e do Douro, também patrocinados por licenciamentos e taxas de turismo, ou relacionadas com o mercado imobiliário, que entram para o erário municipal. A par destas, também as intervenções público/privadas de grandes equipamentos trazem novos usos e dinâmicas urbanas, como nas reconversões de mercados tradicionais e de palacetes em espaços gastronómicos, na reabertura de velhos cinemas, no encerramento ao tráfego de arruamentos que se tornam pedonais e recebem esplanadas para diversão, também nocturna.

 

A par da regeneração urbana, também a dita reabilitação do edificado histórico existente, em grande parte privada, avança velozmente, com frequente mudança do uso residencial, ou comercial, para novos usos hoteleiros, sejam restauração ou alojamento, e ainda para usos em estadia de curta duração – ainda que habitacional ao nível de uso, é porém dirigido ao turismo. A reabilitação do edificado em larga escala é uma nova temática que se apresenta com importância aos arquitectos – formados sobretudo para a criação e a construção nova – que se deparam com novas questões e desafios.

 

A arquitectura debruça-se hoje sobre a valorização do património existente, de intervenção em diálogo com pré-existências e o contexto envolvente, ou mesmo ficcionando algum historicismo – como em tantos interiores e exteriores que criam novos espaços “antigos”. Não raras vezes a ética profissional dos arquitectos debate-se com as vontades do mercado: preservar, adaptar, renovar ou demolir?

 

Entre vastos investimentos de fundos privados em edifícios simbólicos no imaginário colectivo, ou mesmo em quarteirões inteiros – como o edifício do Diário de Notícias em Lisboa, ou o Banco de Portugal e o quarteirão de D. João I no Porto –; seja com financiamento europeu, como nos hotéis de quatro e cinco estrelas no Porto (as próprias autarquias referem ter menos acesso do que os privados); ou com recurso a pequenos investimentos familiares, a reabilitação urbana é visível nas ruas, praças e avenidas das cidades, sentida pelo trepidar e som continuado dos martelos pneumáticos e pelos andaimes que cobrem de novo as fachadas, onde durante anos estiveram placas de imobiliárias “Vende-se”.

 

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As transformações em curso são controversas pois a realidade apresenta complexidade. Com o investimento e as novas oportunidades advindas desta conjuntura, a arquitectura beneficia de novos projectos, após os difíceis anos da Troika. Duas questões se levantam, a reabilitação, mais delicada e subtil, difere do trabalho de projecto e do tipo de construção a que os arquitectos estavam acostumados no final do século XX; e o posicionamento ante a voracidade do mercado imobiliário e o modelo civilizacional de uma regeneração orientada para o turismo exige reflexão, também, dos arquitectos enquanto operadores da grande transformação urbana.

 

Se o discurso mais oficial sobre o sucesso das intervenções tem chegado a público pelos media, urge ouvir também as perspectivas críticas, pelo que o J—A #255 procura perceber a crítica já articulada à transformação urbana, tanto por parte do profissionais que se relacionam com a arquitectura e a cidade como por parte daqueles que delas usufruem. Ouvimos também arquitectos que têm estudado e analisado estes novos fenómenos.

 

Lançando o tema, em Fevereiro de 2017 o J—A promoveu o debate "Porto (que) Sentido? Transformação urbana entre identidade e artifício" , introduzindo publicamente desta edição. Organizado por Carlos Machado e Moura, Pedro Jordão e Alexandra Areia, membros da redacção J—A, no Teatro Rivoli do Porto, o debate reuniu um amplo conjunto de oradores que apresenta o gradiente de posicionamentos, expectativas e estratégias perante a transformação em curso, contando com Pedro Baganha (arquitecto e representante da Câmara Municipal do Porto), Gui Castro Felga (arquitecta e activista urbana – The Worst Tours), Francisco Rocha Antunes (promotor imobiliário da Capital Urbano), Jorge Garcia Pereira (arquitecto, investidor e construtor), Nuno Valentim (arquitecto com um portfolio significativo na área da reabilitação), Maria Ramalho (arqueóloga e representante da ICOMOS-Portugal), Pedro Bismark (arquitecto, crítico e editor da Revista Punkto) e Elvira Rebelo (historiadora e representante da DRCN - Direção Regional de Cultura do Norte).

O debate extrema-se, ao investidor imobiliário que procura o lucro pelo investimento realizado, delegando no arquitecto e nas permissões camarárias os limites para a intervenção (e demolição) no edificado, contrapõe-se a arqueologia e o património que defendem a manutenção das técnicas construtivas originais; temperado pelo posicionamento pragmático do arquitecto ao serviço dos desejos e capacidades do mercado, àquele do arquitecto especialista na integração das diversas épocas e técnicas na reabilitação do edificado ainda em estado merecedor dessa intervenção. Subjacente esteve a forte crítica à regeneração em “monocultura” dedicada ao turismo, que exclui habitantes locais e usos múltiplos. Surgiu ainda a renovada necessidade de auto-crítica dos arquitectos enquanto cidadãos implicados na política de cidade e sociedade que, regenerando, reabilitando, ou demolindo, é a que se vai construindo.

 

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É ampla a diversidade de abordagens arquitectónicas na reabilitação patrimonial, tanto em edifícios de excepção como no edificado histórico corrente, a par dos programas envolvidos na regeneração urbana, pelo que publicamos projectos que vão além dos programas dedicados ao turismo – hotéis, hostels, restaurantes. Optámos por debater o turismo e seus impactos através dos textos críticos, opiniões e ensaios, em questões mais vastas.

 

Seleccionámos três projectos que plasmam intenções que se destinam a distintos programas, escalas, e utilizadores. A conversão de uma ilha do Porto na Rua de S. Vítor, por Bernardo Amaral (BAAU), um tradicional complexo privado para habitação operária precária, em habitação individual com intenção de fraccionamento em alojamento temporário – um grupo de pequenas casas com pátio traz uma nova qualificação a este conjunto. A reconstrução de um prédio de habitação colectiva na Rua Rodrigo da Fonseca em Lisboa, por João Appleton e Isabel Domingos (Appleton & Domingos), teve um primeiro projecto de reabilitação em que obra não foi concluída devido a um incêndio, havendo depois a necessidade de reconstruir o seu interior com atenção a génese arquitectónica do edifício. A reabilitação realizada por André Camelo e Miguel Ribeiro (CREA) do antigo Colégio Silva Araújo, uma construção institucional funcional de interiores modestos, acomodando-o e habilitando-o a nova sede institucional da Santa Casa da Misericórdia do Porto.

 

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Nesta edição #255 do J—A ouvimos a opinião de vários autores sobre o que significa “reabilitar cidade hoje”. A polifonia das respostas encontra momentos de sintonia na crítica. Embora sob perspectivas e argumentos diferenciados, há um cruzamento de ideias e sobretudo de preocupações.

 

Convidámos Pedro Bismarck a desenvolver as ideias que levou ao Debate J—A em Fevereiro, onde observa o direccionamento que tem tomado a reestruturação do centros das cidades feita pelos seus vários intervenientes, enquanto agentes políticos e decisores.

Joana Braga, com António Brito Guterres, contribuem através de um percurso pelo espaço público lisboeta, observando as estratégias de intervenção e os discursos que se formulam na sua regeneração, com um olhar particular sobre a significância da história.

A equipa do J—A traz uma leitura sobre a exposição A Lisboa que Teria Sido, como pretexto de reflexão sobre os modos de ver e intervir nas cidades nos dias que correm; uma observação crítica sobre as respostas projectuais que têm vindo a ser praticadas face à necessidade de densificação do edificado nos centros de Lisboa e Porto; e uma reflexão sobre arquitectura e património no que concerne os modos de intervir em termos de preservação de memória.

Ana Jara e Lucinda Correia, do atelier Artéria Arquitectura, falam-nos sobre a metodologia para repensar a produção de arquitectura, tendo por base a pesquisa que realizaram para o seu projecto Lisbon Skyline Operation.

O designer de comunicação Guilherme Sousa, que integra a equipa de Lojas com História em Lisboa, explica-nos esse programa e dá-nos a sua opinião sobre as diferentes questões que se colocam hoje sobre a ideia de património material e imaterial. 

Pedro Figueiredo contribui com uma narrativa foto-crítica na cidade do Porto, com um olhar sobre as obras de demolição do interior de edifícios emblemáticos, onde se deixam apenas fachadas a cobrir novos hotéis de luxo, construídos com avultados financiamentos europeus.

Letícia Carmo analisa a regeneração urbana no centro de Lisboa, através da introdução de novos usos relacionados com as culturas alternativas, enquanto génese potenciadora dos processos de gentrificação.

Rui Gilman observa a reabilitação do Hard Rock Cafe Porto enquanto operação corporativa que transforma um edifício de serviços e escritórios num espaço de restauração, concertos e lazer, em plena baixa portuense.

Em sintonia com o tema da edição, integramos um conjunto de desenhos produzidos durante as iniciativas AsSALTO, em visitas a locais onde a transformação é eminente.

 

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Por fim, ao longo deste número torna-se evidente que a regeneração e reabilitação trazem novo léxico, seja léxico comercial ou léxico crítico. Pensemos nos novos termos com os quais hoje são referidos espaços na cidade, bens e serviços, ou outros aspectos do negócio imobiliário: food-court, rooftop-lounge, cowork, ou as zonas prime, as walking-distances, e outros anglicismos com os quais estamos já familiarizados.

 

Interessa pôr em evidência o vocabulário crítico que surge empiricamente e que, muitas vezes, pode parecer inusitado. Permeando as conversas, os debates e textos crítico/ensaísticos, uma série de neologismos acompanha a velocidade das transformações em curso, tentando dar forma aos processos e caracterizá-los. Ao longo deste número surgem termos que agrupamos aqui em duas grandes linhas, os que se referem à leitura crítica dos processos de transformação urbana, bem como os novos termos empregues para caracterizar as transformações da própria arquitectura.

 

 

Cidade-marca / Branding – criação de marca e imagem para afirmação de uma cidade enquanto produto/destino de consumo
Cultura material / cultura imaterial – dimensões físicas e simbólicas que caracterizam os espaços e locais de uma cidade e a diferenciam de outras
Demolição – referência constante no debate dos processos de transformação dos centros
Fachadismo – opção pela manutenção de fachada existente com demolição dos interiores e sua total reconstrução
Gentrificação – subida do valor do solo e consequente alteração dos habitantes e usuários de uma zona por outros de classe economico-social mais elevada
Low-costismo – opção de custos mais baixos e de menor qualidade, para servir soluções e propostas de consumo imediato em detrimento do investimento a médio/longo prazo
Mansardização (e fachadas amansardadas) – transformação da morfologia das coberturas com o intuito de aproveitamento de áreas sob as coberturas ou de crescimento de pisos “harmonizados”
Turistificação – regeneração da cidade para uso turístico orientado para o negócio e o visitante
T-zerização – fragmentação de edifício existente em várias unidades T-0 ou T-1 para alojamento temporário, com áreas diminutas, aumentando o rendimento imobiliário.
Uberização – relação com a cidade através de apps/plataformas de consumo e de serviços ao “utilizador”