ENSAIO

As viagens de Távora

Por Susana Ventura
Arquitecta, Doutorada em Filosofia (FCSH–UNL), Pós-Doutoranda (FAUP)

De Atenas ao Japão, o espírito de Fernando Távora perpassa, conscientemente ou não, todas as viagens de qualquer arquitecto português. Ele é o nosso Ulisses, o nosso Marco Polo. E, em cada viagem, o seu espírito renasce, não só nos lugares por onde um dia passou, mas, sobretudo, nos lugares que nunca visitou. As viagens do Prémio Fernando Távora são viagens de Fernando Távora enquanto esse espírito maior que imbui qualquer arquitecto que deseje aprender arquitectura, viajando.

Todos os alunos de Fernando Távora (nos quais, orgulhosamente, me incluo) partilharam consigo inúmeras viagens. As suas aulas eram relatos entusiasmados e vibrantes, em que a sua pequena figura parecia crescer por entre a articulação enérgica a cada novo pormenor desvelado, com uma riqueza e precisão, que nos fazia tocar as pedras dos templos antigos e sentir o calor abrasador do sol mediterrâneo… com várias peripécias à mistura. Como relembra, em 2002, Álvaro Siza: “Tenho viajado com Fernando Távora ao longo dos anos, constantemente. As primeiras viagens aconteceram no estúdio do Palácio Atlântico, ou da rua Duque de Loulé, ou na Escola de Belas-Artes. Por sua boca e gestos, eu e outros tínhamos notícia de tudo o que ele tivesse visitado: o último pormenor de Le Corbusier minuciosamente descrito, a Pirâmide de Gizé, o Templo Union, o túmulo de Frank Lloyd Wright… Por esses relatos, fui aprendendo a gostar de arquitectura: aprendendo arquitectura. Mais tarde, as viagens tornaram-se reais e a experiência compartida. Assim hoje continuam. Salvo a idade, nada mudou”1.

 

Fernando Távora viera a falecer em Setembro de 2005 e, ainda nesse ano, para celebrar o início das actividades do programa I love Távora, o pelouro da cultura da Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitectos2 decidiu instaurar o Prémio Fernando Távora em homenagem às suas viagens, ou como gostaria, pessoalmente, de pensar, a todas as suas viagens por realizar, porque só dessa forma se poderá perpetuar o seu legado. O Prémio destacou-se, de imediato, pelo seu objecto no contexto português3: uma bolsa para a realização de uma viagem, no âmbito de um projecto de investigação, a ocorrer entre o anúncio do premiado, no início de Abril, e a apresentação do resultado numa conferência pública, em Outubro do mesmo ano. E pela composição heterogénea do Júri, garantida com a nomeação de um dos membros pela família Távora (podendo pertencer a esta ou não) e com a integração de, pelo menos, um membro proveniente das áreas da cultura, da política, da ciência ou da arte, conferindo um carácter de excepção e exigência raramente testemunhado noutros concursos de arquitectura em Portugal (por exemplo, o primeiro júri foi composto por José Bernardo Távora, Álvaro Siza, Vasco Graça Moura, Manuel Mendes e Teresa Novais).

 

Até hoje, o Prémio permitiu a realização de 12 viagens4 muito distintas entre si. Algumas viagens foram motivadas pela prática de projecto (Cristina Salvador, Maria Moita), outras pela investigação histórica (Nelson Mota, Sílvia Benedito, Armando Rabaça, André Tavares) ou, até mesmo, arqueológica (Sidh Mendiratta), outras pela necessidade de um “trabalho de campo” (Maria Neto, Paulo Moreira), outras por um desejo em compreender os fios imperceptíveis que ligam, inexplicavelmente, elementos díspares, partindo de uma intuição forte que poderá encontrar o futuro na teoria (Marta Pedro, Susana Ventura, Eliana Sousa Santos). Co-existirão alguns destes motivos certamente, porque apesar de o arquitecto-viajante poder concentrar-se mais na forma das cidades e dos edifícios, a vida que os percorre não pode ser alienada, nem todos os outros factores que determinam a singularidade dos espaços e das horas, como existirão, ainda, motivações ocultas cujos traços poderemos supor ligados aos interesses pessoais de cada investigador. Cristina Salvador não esconde a relação familiar que tem com o território que atravessou: “À chegada ao Namibe, na busca de vestígios dos meus antepassados (trisavós) que aportaram a Mossâmedes, actual Namibe, vindos de Pernambuco, foi-me apontado como obrigatório o encontro com a arte funerária Mbali (…)”5. Uma ligação idêntica, provavelmente, estará no interesse de Sidh Mendiratta pelo território Indiano durante a ocupação Portuguesa e nas relações que as casas-torre detêm com a paisagem onde se inserem. As suas perscrutações pelas ruínas destas casas, a descodificação atenta dos vestígios remeterão o seu imaginário para elementos de uma narrativa maior, a da presença portuguesa na Índia, cujos ecos influenciaram a sua história pessoal. Nalgumas viagens, poderemos, ainda, considerar o papel do desejo que activa a necessidade última em partir, em viajar, habitualmente ainda mais oculto do que os interesses íntimos de cada viajante. São raras as expressões que o tornam visível na justificação do ímpeto em viajar, mas encontramos um exemplo na viagem de Frank Lloyd Wright ao Japão, em 1905, que esteve na origem da viagem realizada por Marta Pedro, impulsionada pelo fascínio daquele arquitecto pelas gravuras japonesas Ukiyo-e. Foram estas gravuras — pelas suas formas abstractas da natureza, as perspectivas invulgares e as cores vivas6 — que o levaram a descobrir e a celebrar a vida, as casas e a paisagem japonesas: “Nesta terra da manhã, encontrei o canto simples e quotidiano do espírito humano, uma “Ode ao Céu”, a ancestral religião deles, corporalizada na habitação quotidiana dos japoneses e vi nela o florir do espírito humano como as árvores e as flores o são, o que nós chamamos de natureza. E aprendi o mais que pude deste canto para as nossas vidas, e fui por ele ensinado — sobre os meus joelhos torturados”7. Cristina Salvador refere-se, também, numa passagem breve, a esse sentido de urgência que a fez partir: “Essas imagens [as fotografias do cemitério de Tômbwa a ser engolido pela areia] acompanharam a preparação da minha viagem, aumentado o sentido de urgência: “ver” qualquer coisa que está a desaparecer. Confirmei agora que uma estranha beleza habita aquele local, mas também uma certa angústia que nos afasta dali, talvez pela dificuldade de caminharmos sobre o desconhecido”8.  A cidade de Tômbwa está “encalhada” entre deserto e mar, revelando uma luta desigual sobre qualquer tentativa de permanência ao longo dessa fronteira, o que cria, inevitavelmente, um sentimento paradoxal na arquitecta que, no entanto, é movida, em primeiro, pelo desejo.

 

 

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Viagem de Armando Rabaça, 2009, Acrópole de Atenas © Armando Rabaça
Viagem de Armando Rabaça, 2009, Delfos © Armando Rabaça
Viagem de Armando Rabaça, 2009, Edirne Eski camii © Armando Rabaça
Viagem de Armando Rabaça, 2009, Edirne Mesquita de Bayezid, pátio de entrada © Armando Rabaça
Viagem de Paulo Moreira, 2011, Workshop Exploratório Urbano da Chicala © Paulo Moreira
Viagem de Paulo Moreira, 2011, Observatório da Chicala, equipa e arquivo físico © Kota Cinquenta
Viagem de Paulo Moreira, 2011, Noite da Chicala, Elinga Teatro, Luanda © Kota Cinquenta

 

 

Na maior parte das vezes, a viagem de arquitectura inscreve-se, não num desejo inexplicável em “partir”, mas na tradição do Grand Tour, presente, igualmente, em muitas das viagens de Távora, que pretendem, desse modo, rescrever a tradição, no sentido em que muitas delas procuram partes deixadas em branco, ou actualizar o conhecimento face ao tempo decorrido. Na viagem de Marta Pedro está contida não só a viagem de Frank Lloyd Wright ao Japão, como também a do próprio Fernando Távora a Taliesin. Na viagem de Armando Rabaça está contida a viagem de Le Corbusier ao Oriente e como o próprio afirma: “A viagem a lugares como a Turquia, a Grécia e a Itália é uma espécie de viagem às origens”9.

Na viagem de Eliana Sousa Santos está contida a viagem de Reyner Banham pelo deserto do Mojave e através de Los Angeles. Depois, existem as viagens intensivas, como Gilles Deleuze as descreve, as viagens que os livros e os filmes nos proporcionam. A viagem de André Tavares descreve uma viagem intensiva por entre uma viagem física, enquanto as viagens de Eliana Sousa Santos e Susana Ventura estão povoadas de referências artísticas, literárias e cinematográficas. A viagem de Nelson Mota é, sobretudo, uma viagem pela cartografia de várias cidades do mundo nos séculos XVIII e XIX (e, por essa razão, pelos arquivos que a contêm). Outras viagens evocam ainda outras muito diferentes, não pelo exotismo do destino, mas pela experiência que muitos de nós não conhece: a viagem de Maria Neto inicia-se a bordo de um avião das Nações Unidas que faz, regularmente, o trajecto até aos campos de refugiados do complexo de Dabaad, simbolizando todas essas viagens que muitos arquitectos e equipas de emergência realizam para responder ao apelo humanitário.

 

Entre as várias viagens de Távora, são evidentes, também, várias intersecções que nos permitem indagar sobre a importância que alguns destes lugares detêm na cultura arquitectónica. Taliesin, por exemplo, foi visitada por Marta Pedro e Eliana Sousa Santos. A cidade de Paris foi visitada por Nelson Mota e André Tavares, ambos à descoberta de arquivos e documentos históricos relevantes para a compreensão do início da modernidade (época histórica). O deserto - embora em latitudes e longitudes distintas - serviu de cenário à deambulação de Cristina Salvador e à de Eliana Sousa Santos (e, curiosamente, ambas falam das miragens que o deserto causa com facilidade). O Oriente, enquanto região geográfica e emocional, do desejo de confronto com o Outro, delimita as viagens de Marta Pedro, Susana Ventura e Sidh Mendiratta. A arquitectura e o urbanismo informais protagonizam as viagens de Paulo Moreira e Cristina Salvador, enquanto Maria Neto e Maria Moita se deparam ambas com a construção de abrigos temporários e processos de realojamento em situações de catástrofes (naturais e sociais).

 

Em muitas viagens de arquitectura pressente-se uma certa urgência em encontrar a origem dos problemas do presente e, até mesmo, do futuro. Le Corbusier, por exemplo, foi até ao Oriente, ou mais especificamente, à Grécia Antiga para encontrar os valores arquitectónicos perenes que atravessam os tempos e as culturas, e que, por conseguinte, deveriam estar, igualmente, na base ou nos fundamentos da arquitectura moderna. Foi em Atenas que definiu a arquitectura como o jogo sábio dos volumes sob a luz (como depreendemos do seu livro Vers une Architecture) e foi, também, aí que regressou para definir o espaço inefável, a sua última cruzada (a viagem, para Le Corbusier, sem dúvida, que se definia como uma cruzada, mais ainda quando viajava para outros países para publicitar os princípios da sua arquitectura). Nas viagens de Távora encontramos, também, algumas que perfazem este sentido de antevisão, das quais destacamos a realizada por Maria Neto até ao complexo de refugiados de Dadaab situado no Quénia para “estudar e analisar criticamente estes territórios indefinidos”, “contribuir para a consciencialização da necessidade de um debate alargado sobre este problema” e “apoiar a prática da acção humanitária, explorando estas estruturas socioespaciais indefinidas como potenciadoras de desenvolvimento sustentável e urbanidade futura"10. Tal como poderemos encontrar pistas, para a nossa sobrevivência futura, na fantástica welwitschia mirabilis11 (como Cristina Salvador salienta) com o aumento significativo da temperatura média dos oceanos e da atmosfera, estes grandes complexos de alojamento de pessoas migrantes, deslocadas involuntariamente por força de conflitos políticos, económicos e sociais, obrigam não só, no momento presente, a reequacionar, uma vez mais, o projecto político e social da própria arquitectura, como também a gerar um conhecimento valioso em cenários e situações de emergência cada vez mais frequentes.

 

 

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Viagem de Sidh Mendiratta, Assangão, 2012 © Sidh Mendiratta
Viagem de Sidh Mendiratta, 2012 © Sidh Mendiratta
Viagem de Susana Ventura, Casa em Unhara Tóquio, Kazuo Shinohara, 2013 © Susana Ventura
Viagem de Susana Ventura, Estruturas de secar peixe em Vard, 2013 © Susana Ventura
Viagem de Susana Ventura, Steilneset Memorial em Vard de Peter Zumthor, 2013 © Susana Ventura

 

 

Uns anos antes, também Maria Moita havia partido em direcção ao Sri-Lanka após o tsunami de Dezembro de 2004, um dos mais devastadores na história desse país, e a Timor-Leste, onde havia sido responsável pelos projectos das escolas de ensino básico sob a tutela do Ministério de Educação local, para reunir informações sobre as diferentes “experiências arquitectónicas” nestes dois países caracterizados pela precariedade social, económica e cultural, situação que se agrava e enfatiza perante cenários de catástrofes naturais ou conflitos políticos. Relevantemente, em ambas as viagens realizadas, separadas por um período de oito anos, em territórios muito distintos, sob diferentes regimes (que acabam por interferir e condicionar os processos e ambas as investigadoras necessitaram de se apoiar nas equipas humanitárias no terreno), encontramos relatos muito idênticos sobre o modo de actuar neste tipo de contextos, assim como das dificuldades inerentes, pressentindo-se, igualmente, a impotência da própria arquitectura em cumprir o que lhe deveria caber: dotar um abrigo temporário de condições condignas e garantir as necessidades básicas de protecção, segurança e privacidade. E ambas as arquitectas chegaram a conclusões muito semelhantes. Maria Moita afirma, assertivamente, que existe uma “distância entre teoria e prática”, tendo-lhe sido revelada, apenas, durante a viagem, acabando por reflectir sobre o papel do arquitecto na intervenção humanitária e exigindo para o projecto de arquitectura a consciência que “faz parte de um programa mais vasto”, “que vai afectar profundamente as vidas das comunidades beneficiárias” 12, enquanto Maria Neto reivindica este mesmo papel, assumindo o tom de um protesto, porque a única outra hipótese possível seria a da resignação.

 

A viagem de Paulo Moreira ao bairro da Chicala, um dos musseques mais centrais de Luanda, releva, a seu modo, também, duas questões fundamentais para a arquitectura e o urbanismo actuais e futuros, como o próprio publicou no Twitter durante a sua viagem: “#Dia 15/28 April 2012: 'Por agora, (…) a única resposta do arquitecto para o problema da cidade contemporânea parece ser ir viver para os musseques' (J. Figueira)” 13. Por um lado, é urgente compreender os modelos de urbanismo informal associados a áreas desfavorecidas das cidades, que, curiosamente, também Maria Neto e Maria Moita observaram na apropriação dos lotes e das habitações, em oposição a um plano reticulado (o que coloca questões desde a incapacidade da arquitectura criar um processo de participação eficaz nestas comunidades à flexibilidade que o modelo acaba por criar e disseminar, contaminando o espaço público e comum). Como denota Paulo Moreira: “Algumas soluções usadas nas casas auto-construídas podem não fazer parte dos protocolos da indústria de construção, mas denotam uma criatividade que pode inspirar a disciplina da 'arquitectura'”14. Por outro lado, é necessária a organização de um arquivo capaz de sistematizar as qualidades únicas que nasceram dessa apropriação autóctone e perpetuar o seu legado face à ameaça constante de desaparição com a construção de edifícios novos, criando-se, para esse efeito, o “Observatório da Chicala”: “O 'Observatório' opera em duas direcções: por um lado, concretiza a identidade da Chicala como um lugar com uma história merecedora de respeito; por outro, cria uma espécie de manual de práticas participativas cujos métodos se inspiram naquilo a que Jane Jacobs chamou 'Arquitectura Social' (…): 'quando há pouco dinheiro para gastar em arquitectura, então certamente que maior imaginação arquitectónica será necessária. Os pontos de partida para edifícios modestos e imagens de cariz social emergirão do dia-a-dia da cidade à nossa volta'” 15.

 

 

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Viagem de André Tavares, Notre-Dame de Paris, 2014 © André Tavares
Viagem de Eliana Sousa Santos, Grand-Canyon, 2016 © Tiago Nunes
Viagem de Eliana Sousa Santos, Pilot Moutain, 2016 © Tiago Nunes

 

 

Não obstante os efeitos da globalização, o confronto com o Outro é ainda capaz de alterar a nossa compreensão do mundo. Dificilmente Marta Pedro compreenderia a relação que os Japoneses têm com a preservação do património edificado, se não procurasse a sua justificação na cultura japonesa, na filosofia budista e no xintoísmo “que assentam em princípios de impermanência segundo os quais tudo tem um tempo de vida, sendo dada grande importância às mudanças de tempo, estação, vida ou morte”, como na celebração da cultura do efémero, donde a “importância fundamental da cerimónia de chá Cha-no-yu e no desenhos dos jardins, nos quais as mudanças sazonais são desejadas e acentuadas. E também nas gravuras Ukiyo-e, ou gravuras do mundo flutuante que representavam um mundo evanescente, onírico — mono no aware, a noção de beleza efémera de natureza”16. Uma viagem a um território desconhecido permite, igualmente, que apreendamos as suas singularidades. Geralmente, com os sentidos mais despertos, o olhar e a escuta mais atentos, o nosso corpo todo ele se abre e se torna sensível às mais subtis dissonâncias das paisagens. Exemplos mais fortes são as descrições do deserto por Cristina Salvador: “No início de uma primeira viagem, o pânico instala-se, quando ao fim de uma hora voltamos exactamente ao mesmo ponto de partida. (…) Para que tudo corra bem, é preciso viajar com quem sabe ler os caminhos. (…) A nós cabe contar o que se vai conhecendo no caminho… a plumagem rala dos capins, algumas acácias, espinheiras espaçadas, às vezes algum gado que espreita curioso. E, é claro, a extraordinária welwitschia mirabilis. Espécie que só existe no deserto do Namibe (…). Darwin chamou-lhe o “ornitorrinco do reino vegetal”, a mim pareceram-me aranhas gigantes fossilizadas, depois quando me aproximei achei-as de uma estranha beleza”. “Depois avançámos… encontrámos outras marcas enigmáticas, passámos três montes disfarçados de zebras e chegámos à savana, à grande festa: gazelas, faisões, codornizes…”17. Ou as de Eliana Sousa Santos sobre a sua experiência na Pilot Moutain Road: “Uma parte do itinerário desta viagem era desconhecido, uma vasta área de deserto entre os estados do Utah e do Nevada. Aconteceu na Pilot Mountain Road, a atravessar uma planície de vastas miragens enquadrada por montanhas de picos nevados. O sol estava alto nesse dia claro, lembro-me de pensar que era meia noite em Lisboa, estavam 43º C e o ar estava seco. Naquele espaço de planície parecia ouvir-se tudo o que não se via: as canções dos pássaros migratórios, o restolhar dos arbustos por animais. Nesse momento senti-me num estado que só consigo descrever como de hiper-atenção, ali os sentidos estendem-se infinitamente sem encontrar obstáculos e identificar a mais ténue variação. Ali há o silêncio que nos permite ouvir sons longínquos, há distâncias infinitas que nos permitem estar num lugar tão quente e ainda conseguir ver neve no cume das montanhas, há um ar tão seco que não tem cheiro. É um lugar que pela ausência de tudo transmite uma sensação de infinidade, e nos dissolve como seres nessa infinidade”18. Nas descrições de Eliana Sousa Santos da sua viagem, surgem, aliás, vários momentos de perplexidade, surpresa e incredulidade, nos quais se pressente a intensidade única da experiência do deserto, algo que Reyner Banham tentou explicar e que Eliana Sousa Santos foi procurar, e ambos parecem relatar uma experiência mística, como aquela quando a luz começa, gradualmente, a cair sobre as partículas de pó que flutuam no ar, criando massas de cores no céu infinito. “Banham descreve esse episódio como “algo tão para além do seu conhecimento e experiência” que soube que se tinha tornado um “desert freak”,” conta-nos Eliana Sousa Santos19. Num plano mais prosaico, Nelson Mota, na sua tentativa de encontrar ressonâncias do modelo portuense de habitação burguesa aquando a expansão das cidades no século XIX, em parte por força do crescimento dessa classe social, apenas conclui que cada modelo de habitação só pode ser entendido na singularidade da cidade e respectiva história (urbana, social, económica, etc.).

 

A viagem implica sempre uma condição efémera. O olhar e a experiência permanecem, quase sempre, do lado de fora, como nas viagens de Aldo Van Eyck à comunidade Dogon, em que estava impedido de participar na vida diária e nos seus rituais, limitando-se a observar e a fazer registos fotográficos limitados. Nalgumas viagens de Távora, existiram várias tentativas de aproximação (imprescindível para qualquer investigação). À data da viagem, a viver há mais de sete anos no Japão e conhecedora da língua, dos rituais, das filosofias e das religiões, Marta Pedro trouxe para a sua viagem um conhecimento profundo da cultura oriental, sobretudo sobre os aspectos que poderiam despertar um olhar ocidental como o de Frank Lloyd Wright, uma vez que a influência, que a cultura Japonesa poderá ter exercido na obra e pensamento deste, foi sujeita, necessariamente, à cultura norte-americana (porque, como diria Goethe, “o nascimento e os costumes são raízes fortes 20). Os arquitectos-viajantes não procuram conhecer a diferença para imitar ou “fazer como”, mas abrir o seu pensamento à diversidade, à variação, à multiplicidade e destas resgatar a centelha que, sob a transformação própria do acto de criação, dá origem a algo, completamente, novo (as influências poderão ser mapeadas mediante os traços ténues dos seus vestígios — uma fotografia do álbum de Wright, uma nota na correspondência de Le Corbusier, uma memória de uma passagem de um livro —, mas jamais apontadas, de forma directa, na obra). Maria Moita, por sua vez, regressou a Timor-Leste para avaliar a implementação e o impacto nas comunidades das escolas que havia desenhado anos antes, como a própria reconhece: “Conhecer intimamente este processo até determinada fase constitui uma mais-valia na análise e aferição de resultados do mesmo”21E a viagem de Paulo Moreira correspondia à sua terceira estada em Luanda sob os mesmos princípios orientadores.

 

Mas não se prenderá o acto de viajar com uma aprendizagem nova, com a descoberta de mundos (ou elementos) desconhecidos e a aquisição de um saber que não pode ser apreendido de outra forma? Até que ponto se pode definir por uma necessidade de constatação traduzida em surpresa ou decepção? Curiosamente, André Tavares refere que nas suas várias candidaturas ao Prémio Fernando Távora apenas teve sucesso quando apresentou uma proposta que não envolvia riscos, ao contrário da viagem realizada que foi, principalmente, uma viagem de confirmação, como o próprio admite (e todo o seu percurso até essa já indicava): “A viagem ao livro de arquitectura era uma viagem de redescoberta, de confirmação e ampliação de um universo de memórias. (…) Outras propostas anteriores que fiz ao Prémio Távora arriscavam a hipótese de criar condições para que coisas inesperadas acontecessem. (…) E essas propostas foram todas recusadas liminarmente pelos sucessivos júris. Só quando apresentei uma proposta sem riscos é que tive o privilégio de me ser atribuído o Prémio”22. A viagem de Armando Rabaça foi, igualmente, uma viagem de verificação, em que, no entanto, o arquitecto valoriza a experiência pessoal dos lugares: “A viagem que realizei no âmbito do Prémio Fernando Távora foi de certa forma a conjugação de duas viagens, uma à “viagem do Oriente” de Le Corbusier e outra aos lugares visitados. Ambas foram viagens de verificação, ainda que indissociáveis. Verificação dos lugares que Le Corbusier visitou e das lições que terá tirado destas, por um lado, e verificação pessoal desses mesmos lugares a partir de uma leitura pessoal”23. Não é, contudo, apenas, a experiência subjectiva que difere, é o próprio tempo, algo que Goethe, por exemplo, referia constantemente sobre o conhecimento sedimentado nos livros de História de Arte. Existirá, sempre, uma interrupção, um fragmento de espaço-tempo que nenhuma viagem conseguirá preencher.

 

Da experiência subjectiva devemos reter as descrições empíricas que acompanham muitos dos relatos das viagens. Estas não se reduzem, porém, à descrição da sucessão de acontecimentos ou das coisas (paisagens, edifícios, tradições, rituais, etc.) tal como foram apreendidas, juntamente com algumas notas sobre as condições atmosféricas ou sobre os estados de espírito, entre melancolia, ansiedade e exaltação, que, habitualmente, condicionam a nossa percepção, compreendendo, pelo contrário, um pensamento que se assola naquele preciso momento do encontro, provindo directamente da experiência, o qual, consequentemente, não poderia, de modo algum, ser pensado anteriormente, como, pelo contrário, desafia e altera o que já se sabia ou intuía de antemão. Muitas vezes, estas descrições revelam uma experiência de espanto e assombro que pode conduzir, inclusivamente, a momentos de bloqueio. Na experiência empírica sobressai, igualmente, a reacção do corpo atento — a viagem agudiza a sensibilidade dos nossos órgãos (e não só os dos sentidos) — como, por exemplo, quando Marta Pedro descreve a subida ao templo Chion-in, através do movimento da sua respiração e do esforço do seu corpo, o percurso pelos jardins e pelos templos de Nikko, estabelecendo uma ligação directa às obras de Wright (curiosamente, tanto Marta Pedro como Eliana Sousa Santos realçam, da visita a Taliesin, o ritmo constante entre cheios e vazios, espaços de compressão e descompressão, pequenos em sombra para, de imediato, se precipitarem num pátio inundado de luz, que, segundo Marta Pedro, Wright traz da sua viagem ao Japão). Não só as estruturas do nosso conhecimento são desfeitas e ruem perante a experiência directa, como o nosso próprio corpo é, por vezes, obrigado a modificar os seus tons e temperamentos.

 

A demanda de Cristina Salvador pelos sambos é, igualmente, reveladora da importância da experiência do lugar e do posicionamento do corpo: “É sempre emocionante deparar com o esquema circular dos “sambos” que pontua nalguns locais o território por onde passamos. Sejam os pequenos círculos de ramos em volta de uma espinheira, sejam os círculos maiores com clareiras abertas, resultantes da apanha dos arbustos que depois formam as cercas. A função é a mesma, acolher temporariamente pastores e rebanhos por períodos curtos: são os espaços de apoio à prática da transumância. Olha-se em redor e tudo bate certo: os recursos existentes, o esforço reduzido e a localização24.

 

A experiência empírica, hoje, significa, também, o reverso da proliferação das imagens, sobretudo, digitais que são, cada vez mais, assumidas como construções fictícias de pensamento. Uma imagem de um lugar já não pode ser, presumivelmente, a sua representação, mas uma manipulação pelo olhar e pensamento de outro sujeito. Se é verdade que a fotografia, como forma de representação do mundo, nunca é, verdadeiramente, objectiva (o fotógrafo é um sujeito pensante e os próprios instrumentos de composição da fotografia condicionam, de imediato, o que aparece na sua superfície), existiu, de facto, uma interdependência entre o advento da fotografia e o turismo de massas, como denotou Walter Benjamin, como a fotografia se revelava, ainda, aliada da exploração científica. Contudo, hoje, dificilmente acreditamos numa fiel representação da realidade através da fotografia ou do vídeo, que, curiosamente, nos devolvem essa necessidade de ir verificar com os nossos próprios olhos aquele lugar, aqueles recortes das pedras, aqueles tons de negro e, por conseguinte, trazer connosco a nossa representação do lugar, não só o que nos ocorre por meio de um impulso (influenciado pelas nuvens e pelas cores do céu e pela nossa ânsia ou espera), mas também pelo que demora uns dias a sedimentar num outro pensamento. Curiosamente, Eliana Sousa Santos, na sua visita à América do Norte, depara-se com um perturbador hibridismo: “A par dos factos históricos que povoam os lugares por onde passámos, somos assombrados pelo imaginário colectivo em lugares estranhos e familiares que conhecemos da literatura, da música, do cinema, dos noticiários. Na América, o espaço real está tão marcado pelo imaginário que, hoje, testemunhamos, com algum alarme, os sintomas desta fusão perigosa entre ficção e realidade” 25.

 

Depois, existem ainda os sonhos que uma viagem expressa e que são como que revelações que não poderiam sequer ser imaginadas, são visões que o viajante muitas vezes tem quando já se encontra, suficientemente, liberto dos preconceitos e do saber, previamente, adquirido e, por conseguinte, já integrado por entre o tecido dos dias e dos lugares. Já não existe um saber como o Outro faz, mas já se faz com o Outro, como na experiência do deserto de Jean-Philippe Vassal onde este construiu uma casa para viver. Estes sonhos não dizem respeito, porém, àquelas pequenas descobertas que qualquer viajante faz, por exemplo, de lugares recônditos que ainda não aparecem nos guias turísticos, nem à apreensão real das coisas (como o próprio sabor da comida, porque os alimentos, face às diferentes condições atmosféricas e às qualidades dos solos, adquirem um sabor diferente), mas, à semelhança da descrição empírica que realçámos, implicam a formulação de um pensamento, no entanto, prévio, que nasce no inconsciente, que se expressa, afinal, ali, naquele lugar, naquele momento preciso sem que suspeitássemos ser possível. Naturalmente que este inconsciente é fabricado com pedaços de livros, de filmes, de histórias e mitos (Cristina Salvador refere-se várias vezes, por exemplo, aos mitos associados aos pastores do Namibe), de referências que nos chegam de forma indirecta, através de outros. Cristina Salvador descreve-nos o seu sonho: “Junto a Njambasana existe um lugar mágico, na realidade, sem nome, mas que o soba Mbeape por termos insistido muito, indicou como “Ocowai”, que parece querer dizer “pedras vermelhas”. Vamos então chamar-lhe assim: Ocowai / Só estar ali mesmo / Ver e ouvir o silêncio / Parece que se mastiga o silêncio, que se engole e passa a circular na nossa respiração / Ocowai / Depois, uma enorme vontade de desenhar o som, as formas, a luz… / Tudo que nós arquitectos procuramos criar: reflexos, efeitos / sons, emoções / Estar ali é mágico / Mas só quando a nossa sombra se projecta, o sentido desta viagem prossegue”26.

 

Da viagem, regressamos sempre diferentes. “Sabemos desde Kant que a realidade não está na coisa em si, mas na forma como a apreendemos. A experiência da viagem nunca corresponde aos sonhos prévios. É invariavelmente distinta, mais rica, sobrepondo-se indelevelmente à irrealidade dos prenúncios iniciais. Daí a importância da viagem. Nunca voltamos os mesmos”, revela-nos Armando Rabaça27. Há momentos de revelação pura, como aquele que Eliana Sousa Santos descreve: “Ficamos sem palavras perante o sublime, perante o que nos surpreende e nos leva a reconsiderar a nossa posição. O símbolo do sublime americano é o Grand Canyon, a dimensão dos desfiladeiros é impressionante, mas o que nos afecta mais é sentir a insignificância do tempo histórico, quando o comparamos com a escala do tempo geológico, os biliões de anos aparentes naquelas camadas de rocha”28. Outros de incapacidade, como nos confessa Cristina Salvador: “Finda a viagem dei-me conta que o deserto tem uma escrita a decifrar, com traçados, sinais, tensões em direcções diferentes, e que todos os elementos se apresentam simultaneamente com enorme clareza e enorme complexidade e isso provoca uma sensação de inatingível, que dificulta a reflexão”29. No fim, cada uma destas viagens inscreve-se num trabalho que a repercute (e repercutirá) em diversos sentidos, que se torna, por ora, impossível de avaliar. ◊

 

 

 


 

 

AgradecimentosAgradeço à Adriana Castro, da Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitectos, a sua gentil ajuda na consulta dos arquivos relativos ao Prémio Fernando Távora, e aos premiados que aceitaram responder às minhas questões: Nelson Mota, Armando Rabaça, Paulo Moreira, Sidh Mendiratta, André Tavares, Eliana Sousa Santos e Maria Neto.