OPINIÃO

O eterno retorno do debate geracional

Por Alexandra Areia e Carlos Machado e Moura

Arquitecta e doutoranda (ISCTE-IUL)

Arquitecto e doutorando (FAUP)

A geração que vem, sempre feroz opositora, irracional inimiga,
salutar, melhor, provocadora!
(por mim, ainda não me cansei de esperar ser provocado).
Manuel Graça Dias 1

 

Em Pós-crise e a arte da respostade uma geração entalada, encarou-se o período de crise — balizado aproximadamente entre 2010 e 2015 — como um acontecimento de tal forma disruptivo na sociedade portuguesa e, em particular, no âmbito profissional dos arquitectos, que legitimaria uma abordagem geracional na leitura da arquitectura portuguesa recente. As últimas décadas testemunharam uma série de mudanças no contexto da profissão — a disseminação das tecnologias digitais e as redes, o aparecimento e a explosão de cursos universitários, a livre circulação e as experiências formativas e laborais no estrangeiro, etc. — a que vieram acrescentar-se aquelas ditadas pela crise e a profunda precariedade com que a profissão teve (e ainda tem) de se debater — escassez de encomenda, estágios não remunerados e recibos verdes, baixos honorários e “calotes”. Estes factores reflectiram-se em toda a classe, porém puseram também em evidência as diferentes velocidades em que se move o sector da produção arquitectónica. Inevitavelmente as gerações mais jovens sentiram os efeitos de forma especialmente dura, emigrando de forma massificada.

 

O denominador geracional constitui uma categoria como tantas outras — questões de  género (o número das mulheres na profissão), escolas ou epicentros de formação (ensino público e privado), geográfica (Norte e Sul), fornecendo critérios concretos para agrupar obras e autores numa determinada amostragem. Mas mais do que qualquer outro, as “gerações” revelaram-se uma espécie de best of — ou melhor, de new hits — que a crítica, a curadoria e a divulgação arquitectónica em Portugal ciclicamente reciclaram, sob diferentes termos, formatos e agendas. Com este texto enunciamos alguns dos diferentes momentos em que a questão dos “novíssimos” e das gerações emergiu no debate arquitectónico no nosso país, gerando maior ou menor controvérsia. E se uma conclusão pudesse emergir desta panorâmica, avançaríamos que, a existir hoje, a leitura geracional deverá constituir-se como uma visão reconciliada com o presente — como no conceito nietzschiano do “Eterno Retorno” — nem presa à nostalgia do passado nem a uma ânsia de futuro, que vêm apenas relativizar a realidade que vivemos.

 

 

Chamar as gerações pelo nome

 

Dar nomes a gerações é uma prática comum e muito generalizada em termos demográficos, geralmente identificando-as pelas especificidades contextuais da sua juventude. Surge na esquina para o século XX, pela mão de Gertrude Stein, que designou de Lost Generation a dos que, como Hemingway, passaram a juventude durante a Primeira Guerra Mundial, para depois atravessarem os Roaring Twenties e mergulharem na Great Depression. Apesar de criado em contexto literário, o termo designa toda a geração nascida entre 1883 e 1900, tal como o livro Generation X de Douglas Coupland 2 serviu para baptizar os nascidos entre 1965 e 1980. No entanto, estes ciclos geracionais alargados vieram comprimir-se em 10 ou cinco anos, para se associarem directamente a contextos histórico-sociais mais específicos. É exemplo disso o termo Xennials, viral em 2017, que designa uma microgeração nascida entre 1977 e 1983, entalada entre as gerações X e a Y, esta última mais conhecida por Millennials (pós-1980) e que seria sucedida, por sua vez, pela Z ou Centennials (pós-1995).

 

Contudo, a utilização de “geração” associa-se também a grupos vanguardistas e seus manifestos, sendo a sua afirmação uma reivindicação dos mais novos perante um poder instalado ou uma narrativa dominante. São uma forma de ruptura, com reduzida tradição em Portugal, mas também oriunda do contexto literário e artístico. Recordemos, por exemplo, a célebre Geração de 70 ou de Coimbra — de Eça e Ramalho Ortigão, que prometia revolucionar a cultura portuguesa da política à literatura, e que pouco depois se autodenominaria como os Vencidos da Vida, um mero grupo jantante confrontado com o seu próprio fracasso. Ou a Geração dOrpheu — de Almada, Pessoa e Mário de Sá Carneiro — que, à boa moda do Futurismo, quis dar “uma bofetada no gosto público” e cuja revista homónima viria a constituir, nas palavras de Almada, “o primeiro grito moderno que se deu em Portugal”.

 

No âmbito da arquitectura em Portugal, as questões geracionais — via selecção e divulgação do trabalho de autores mais jovens — têm oscilado entre estas duas perspectivas: entre uma análise das condições contextuais e um programa de reivindicação e renovação. Ao longo da segunda metade do século XX, várias edições e iniciativas destacaram o trabalho dos mais jovens com uma cadência relativamente dilatada e sem recorrer a nomes específicos. Com a passagem para o século XXI, e antes dos “anos sabáticos” da crise, o ritmo acelerou-se e as iniciativas multiplicaram-se: os termos X, Y e Z — com algum desfasamento face às gerações demográficas — entrariam no glossário da arquitectura portuguesa.

 

 

 

 

Rupturas, Continuidades e Des-Continuidades

 

Durante os anos mais intensos da crise a produção arquitectónica hibernou e Portugal tornou-se num no country for young men (and women!), com muitos arquitectos conduzidos à emigração, especialmente os mais jovens. No entanto, pouco antes, já o debate geracional parecia ter atingido um ponto sem retorno. Os depoimentos 3 recolhidos pela iniciativa Geração Z — lançada por lançada pela revista arqa entre 2007 4 e 2011 — testemunham um notório ambiente de crispação perante a invocação do tema e a noção de ruptura que lhe costumava estar associada. Para além da impossibilidade de encontrar elementos unificadores e de estabelecer consensos perante a galopante pulverização das práticas, os inúmeros críticos entrevistados são unânimes a identificar, no esforço de síntese subjacente à leitura geracional, uma perda na riqueza e na diversidade da produção arquitectónica, assim como a descartar, na sua maioria e de forma feroz, as rupturas geracionais enquanto golpes mediáticos de reduzido substracto cultural. Porém até nessa reacção encontramos algumas discrepâncias “geracionais”: os críticos mais experientes associam inequivocamente o recurso às gerações enquanto forma instrumental da afirmação de jovens arquitectos, por sua vez os críticos um pouco mais novos reconhecem na abordagem geracional uma potencial oportunidade para reflectir sobre a actualidade e sobre as múltiplas nuances da produção arquitectónica, apesar dos riscos de homogeneização que a taxonomia e a generalização acarretam.

 

Com a atribuição deliberada da última letra do alfabeto, os mentores da Geração Z — Luís Santiago Baptista, Paula Melâneo e Margarida Ventosa — pretendiam identificar uma geração sem “origem clara nem futuro definido” que testemunharia o eclipse definitivo da lógica geracional. Como características comuns, para além de nascidos no pós-25 de Abril, os seus protagonistas denunciavam o “agravamento das condições profissionais dos mais jovens” e reivindicavam um “distanciamento da questão da autoria individual”, assumindo quase invariavelmente a forma de colectivos com nomes abstractos e, por vezes, abriam-se a práticas alternativas e “extra-disciplinares” 5.

 

Esta Geração Z surgia também na continuidade da controversa exposição Metaflux — comissariada por Pedro Gadanho e Luís Tavares Pereira, para a representação portuguesa na 9.ª Bienal de Arquitectura de Veneza em 2004 — que identificava “duas gerações na arquitectura portuguesa recente”: a geração X, dos nascidos no fim da década de 1960, e a geração Y, do início de 1970. Os comissários procuravam sublinhar uma ruptura internacionalizante na produção arquitectónica do país e pretendiam questionar a incerteza do vazio identitário nacional motivado pela “desaparição das fronteiras e a maior facilidade de movimentação física entre os países europeus” 6. Quando às diferenças entre as gerações X e Y, estas assentariam essencialmente na sua “atitude relativamente ao papel da comunicação” e em expressões de fundo que assumem vias radicalmente diferentes — “entre um minimalismo conceptualmente enriquecido e um novo registo de diversidade”.

 

Por sua vez, também em 2004 e escassos meses antes de Metaflux, o Jornal Arquitectos titulava o n.º 214 de Geração X, retomando o livro de Coupland: é num “universo de consumíveis, feito de acumulação e entropia, que as personagens de Geração X navegam sem lugares sagrados nem ideologias redentoras. Almas neutrais, se é que isso existe” 7. Perante a série de projectos representados, escrevia Diogo Seixas Lopes, “circula-se pelo mundo como no livro de Coupland”, “com outra desenvoltura e sem enclaves”, em que aquilo que os parece mover é “o impulso cristalino de partir pedra”.  No editorial, o director do J—A, Manuel Graça Dias escrevia: “Gostaria de entrever uma geração procurar um lugar a partir do qual a sua voz fosse ouvida, as suas ideias para o mundo atendidas, as suas qualidades e estudos encaminhados para criarem futuros diferentes, contributos renovados, paixão, modos outros de ler tudo de o que nos cerca, debate, energia!”. Neste número estavam já representados autores que depois seriam retomados nas iniciativas que lhe seguiram: Bernardo Rodrigues, Atelier de Santos e Nuno Brandão Costa na geração Y de Metaflux, os colectivos AUZprojekt, E-Studio (aka extrastudio) e Embaixada na Geração Z.

 

Como já referimos, estes X, Y e Z pouca correspondência têm com as gerações demográficas. Os próprios curadores de Metaflux reconhecem que a designação geracional é sobretudo “conveniência de discurso” 8 e um “dispositivo de análise” porque o “importante é continuar a fazer notar que, de facto, as coisas mudam” 9. Perante a grande controvérsia que a iniciativa gerou entre os pares, Pedro Gadanho escreve anos mais tarde um irónico mea culpa, em que sublinha não ter pretendido instigar “um conflito de gerações” e reconhece ter padecido de “febre classificatória” na preparação do catálogo do Metaflux 10 : “A culpa aí foi mesmo de uns curadores jovens e incautos que acharam por bem recorrer a tais classificações para justificar a única metamorfose que então se podia descortinar na arquitectura portuguesa — porque era de metamorfose que se tratava na Bienal à qual se destinava a dita exposição — era mesmo uma metamorfoses de atitudes. Isto é, uma alteração infecciosa do modo de ser de gerações muito próximas” 11.

 

Se mudança e metamorfose eram os termos-chave desta iniciativa, outras preferem sublinhar os traços de continuidade ou, quanto muito, de des-continuidade 12. É exemplo disso o número da revista 2G dedicado a “uma nova geração de arquitectos portugueses” 13. Como explica João Belo Rodeia na introdução 14, a entrada no novo milénio trazia um interesse mediático na mais recente geração de arquitectos, entre os quais se contam Aires Mateus, Inês Lobo, João Mendes Ribeiro ou José Fernando Gonçalves. Estes autores haviam chegado na última década à prática independente e, num tempo em que “o exercício profissional individual escasseia”, destacavam-se por terem já obra construída — “o que não é vulgar em termos europeus” 15. Para Rodeia, esta “nova geração”, ao contrário de outras, não “caiu vítima de um certo fenómeno de exaltação sobre esse potencial status” nem sente qualquer “desconforto em relação ao seus mestres” e, portanto, não aspira a uma “hipotética ascendência” à custa dos últimos ou de si mesmo. Essa consciência tanto do legado existente como da afirmação específica que representam, permitia-lhes expressar uma certa “serenidade” no exercício da construção de edifícios e territórios — a sua “natural obsessão”.

 

Dez anos antes, à entrada dos 1990, já a revista Architécti tinha também ensaiado um número Portugal Geração 80. Neste caso, porém, pouco discurso “geracional” complementa as 16 obras seleccionadas: “a prudência mais elementar aconselha a que se ignorem ostensivamente as ligações geracionais e se considerem as obras como se nada as relacionasse entre si. Os tempos vão maus para as ideias globais”, rematava então Paulo Varela Gomes num artigo da revista 16.

 

Mais do que do ar dos tempos, esta prudência vinha da ressaca de iniciativas que tinham acentuado outras clivagens e da série de “polémicas de paróquia” 17 que havia caracterizado o aguerrido debate em torno do pós-modernismo, tão fértil em contrastes e posições virulentas — como Manuel Mendes e Nuno Portas sintetizam no catálogo da sua exposição para Serralves em 1991 18: “para o observador exterior ou para quem consulte as poucas revistas que foram saindo na última década, o panorama da reorientação da pesquisa arquitectónica, ainda que esquematicamente, organizar-se-á em dois pólos”: o dos “jovens críticos e autores”, que se identificam pelo seu “hiperactivismo nos media” e que foram “participantes activos na exposição Depois do Modernismo” de 1983; e um “conjunto de autores de diferentes gerações e sensibilidades formais-estéticas” em que a ideia de “processo com coesão” se aproximava da tendência arquitectónica “normalmente identificada ou abusivamente generalizada” como Escola do Porto.

 

Com efeito, em 1983, a exposição Depois do Modernismo constitui uma definitiva manifestação de ruptura neo-vanguardista: “Recusámos fortemente todos aqueles que não sentem que o tempo passou desde o heroísmo moderno dos anos 40/50 em Portugal. Hoje não é ontem, daqui o nosso sentimento de que a modernidade contemporânea pode ser Depois do Moderno19, escrevia no catálogo Michel Toussaint, comissário executivo da secção de arquitectura. No mesmo ano, o número 149 da revista Arquitectura seria intitulado Novíssimos 20 e apresentava trabalhos de jovens arquitectos formados a partir de 1976-77, em que muitos teriam já participado na exposição Depois do Modernismo. Em claro rompimento com a “geração dos neo-realistas (ladrões de bicicletas)”, esperava-se destes “novíssimos” o definitivo “abandono do projecto político e social sobre o projecto de arquitectura”, e o retorno da “prática da arquitectura como uma das Belas-Artes”, apoiada no desenho e na construção 21. Escreveria o editor, José Manuel Fernandes, “Geração perdida enquanto projecto coerente e colectivo; geração ganha enquanto busca de um novo estar, de uma nova prática só possível a partir do zero, criando uma abertura, antes inexistente, a novas linguagens, conceitos, práticas, que desbloqueie esta profissão ora tão desgastada (porque antes tão fechada em universos coerentes com um mundo que já não existe hoje).” 22

 

Por sua vez, o termo “novíssimos” teria sido re-apropriado, “por bom humor e analogia” 23, de um texto de Nuno Portas de 1959, que marcará a origem do debate geracional na cultura arquitectónica portuguesa. No editorial do n.º 66 da mesma revista Arquitectura, Portas apelava à “responsabilidade de uma novíssima geração no movimento moderno em Portugal” 24, perante o “vazio prático inevitável” resultante da crítica aos princípios formais da arquitectura entre-guerras e da destruição causada pela II Guerra em toda a Europa. A nova geração teria o dever de encontrar um novo conceito de modernidade, através não de mero vocabulário — passível “de descambar num ecletismo formal” — mas de uma profunda revisão metodológica — pela “conexão do acto criador com os processos de conhecimento da realidade”. O jovem Vítor Figueiredo, então com 30 anos, era um dos arquitectos representados, com uma moradia em S. João do Estoril, que Nuno Teotónio Pereira comentava da seguinte forma: “Esta obra, de uma qualidade rara, é falhada nos seus suportes e nos seus complementos e é por isso um exemplo vivo de que só a construção — o edifício —, a despeito dos melhores predicados, não chega para ordenar, guarnecer e afeiçoar o espaço destinado à morada do homem. Mas a obra vale positivamente pela procura de um caminho consciente” 25.

 

 

Coda

 

Nestes primeiros anos de “retoma” económica assistimos ao retorno da mediatização dos jovens arquitectos e da questão das gerações, não só por via de iniciativas e conferências 26 mas também de artigos que, por um lado, retomam algumas das designações deste debate e, por outro, apresentam novas reflexões sobre possíveis linhas de continuidade ou inflexão face aos mestres. São disto exemplo o artigo “Uma novíssima geração de arquitectos do Porto” de Pedro Baía no Público, sobre os pavilhões temporários em Serralves — que tem a particularidade de retomar o termo “novíssimos” utilizado por Portas, mas desta vez com arquitecturas efémeras e sem qualquer agenda geracional, ou o dossier Outros arquitectos do Porto curado por Elisa Pegorin na Casabella n.º 880, de Dezembro 2017 — em que a autora, a propósito do 26.º aniversário do dossier de Manuel Mendes e Portas naquela revista, procura encontrar os traços comuns da nova geração de arquitectos 27 e a sua continuidade com os mestres, para além de explicitar uma especificidade portuense.

Está, por isso, o ciclo fechado ou, se preferirmos, reaberto. ◊