CRÓNICA

Na inauguração da Casa da Arquitectura

Por Laurem Crossetti

Investigadora de Doutoramento em Museologia (FLUP)

 

A Casa

 

A nova sede da Casa da Arquitectura, projecto tão aguardado em Portugal, foi finalmente apresentada ao público em Novembro de 2017, 10 anos depois da criação da entidade cultural que se dedica à divulgação, em âmbito nacional e internacional, da Arquitectura. 

 

A primeira sede da instituição, a Casa Roberto Ivens, pertencia à família do arquitecto Álvaro Siza e foi adquirida pela Câmara de Matosinhos em 2007, com a intenção de abrigar o Centro de Documentação Álvaro Siza em conjunto com a Casa da Arquitectura. Localizada a poucos quarteirões da nova sede, a casa passou por obras de adaptação às suas novas funções e foi inaugurada em 2009, ano em que também recebeu importantes doações para o seu acervo: mais de 15 arquitectos, entre eles Eduardo Souto de Moura, Paulo Mendes da Rocha e Gonçalo Byrne, assinaram protocolos de doação1. À época, falava-se sobre a construção de um edifício de raiz, desenhado por Siza, para abrigar a Casa da Arquitectura, com planos de transformá-la futuramente num Museu Nacional de Arquitectura2. Tendo sido desenhado e projectado, o edifício viu-se cancelado, alegadamente por restrições orçamentais, sentindo-se assim a pressão de perder o arquivo de Siza para outras instituições nacionais e internacionais de renome3.

 

Guilherme Pinto, então líder da autarquia, optou por sediar a Casa da Arquitectura no local da antiga Real Vinícola, um dos primeiros complexos industriais construídos em Matosinhos em finais do século XIX. As obras de recuperação, inicialmente orçamentadas em 3,2 milhões de euros, tiveram início em 2015 com projecto do arquitecto Guilherme Machado Vaz. No verão de 2016 realizou-se o evento Be a Part Of, que apresentou ao público o estado das obras do edifício e a programação da futura instituição, atraindo cerca de 1.300 pessoas ao local4. Logo em seguida, durante o encerramento da Bienal de Arquitectura de Veneza, o director-executivo da Casa da Arquitectura, Nuno Sampaio, projectou a inauguração da instituição para Junho do ano seguinte. Foi anunciado, também, um aumento do orçamento do projecto, num investimento de 2 milhões de euros em equipamentos, 700 mil para o arquivo e 2,5 milhões para funcionamento e programação5

 

Finalmente, em Novembro de 2017, foi inaugurado o quarteirão da antiga Real Vinícola, um espaço totalmente reformado de quase 8.000 m2 que abriga a Casa da Arquitectura (CdA), a sede da Orquestra de Jazz de Matosinhos e outras áreas de cunho comercial. Oficialmente denominada Casa da Arquitectura — Centro Português de Arquitectura, a instituição ocupa quase 5.000 m2 divididos entre espaços expositivos, de conservação e manutenção, produção e gestão interna, além de auditório, biblioteca e loja, e afirma-se como "o primeiro museu português exclusivamente de arquitectura com arquivos e espaços expositivos"6.

 

 

Zona de arquivo da Casa da Arquitectura © Ivo Tavares Studio
Zona de arquivo da Casa da Arquitectura © Ivo Tavares Studio

 

 

Missão, colecções e público

 

A CdA tem como missão ser não apenas uma entidade programadora mas, sobretudo, uma entidade de investigação e criação7. O seu director, o arquitecto Nuno Sampaio, delineia três eixos de actuação: cuidar, tratar e celebrar o trabalho de arquitectura. Tais objectivos serão realizados por meio do desenvolvimento do seu arquivo que, para já, conta com duas colecções: uma com a temática da arquitectura pós-25 de Abril, encomendada aos arquitectos João Belo Rodeia, Ricardo Carvalho e Graça Correia, abrangendo o período de 1974 a 1999; outra colecção dedica-se à arquitectura brasileira, sob a responsabilidade de Guilherme Wisnik e Fernando Serapião, com representação de Paulo Mendes da Rocha. 

 

A instituição espera, em alguns anos, poder abranger cerca de 300 projectos de mais de 100 arquitectos no seu arquivo. Outra estratégia é o estabelecimento de parcerias com outras instituições, nacionais e internacionais, fomentando o intercâmbio de colecções e experiências. Em Portugal, existem mais de duas dezenas de entidades que salvaguardam o património arquitectónico: câmaras municipais, instituições de cunho museológico e expositivo (por exemplo: Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação de Serralves, Centro Cultural de Belém), a Ordem dos Arquitectos, o SIPA – Sistema de Informação de Património Arquitectónico, dentre outras. Por meio de acordos, pretende-se criar uma rede de colaboração para o desenvolvimento da pesquisa e da divulgação do património arquitectónico português, com a CdA servindo de espaço expositivo de referência para essas colecções. A Câmara de Matosinhos, por exemplo, cedeu em regime de comodato algumas das obras pertencentes à autarquia, com nomes de peso como Souto de Moura, Fernando Távora e Álvaro Siza. 

 

Entre todos os esforços lançados, tem destaque a ambição da CdA de alcançar o público não-profissional, ou seja, ser "uma casa da arquitectura para não arquitectos"8. Tal intenção ficou clara na ocasião da sua abertura, entre os dias 17 e 19 de Novembro. Num fim-de-semana de intensa programação totalmente gratuita, mais de 12.000 pessoas estiveram no quarteirão da Real Vinícola. Entre visitas guiadas ao edifício e às exposições, debates, festas, leituras encenadas, performances, lançamento de livros, workshops e actividades para famílias e crianças, a Casa da Arquitectura promoveu uma notável celebração da arquitectura. Na nave expositiva, o público pode visitar a exposição Poder Arquitectura até 18 de Março; na Galeria da Casa, está patente até 4 de Fevereiro a exposição Desplazamientos, Deslocamentos, Displacements, com projectos premiados na X Bienal Iberoamericana de Arquitectura e Urbanismo (BIAU). O serviço educativo da Casa, designado Programa Caleidoscópio, ofereceu, nesse fim-de-semana inaugural, actividades a mais de 1.500 participantes. Entre as conferências que tiveram lugar na Sala Nascente, À conversa com Eduardo Souto de Moura atraiu mais de 500 pessoas na noite de domingo.

 

 

Please Share, organização do ciclo de Roberto Cremascoli, sessão com moderação de João Belo Rodeia e participação de Guilherme Wisnik, Joseph Grima e Pippo Ciorra © Ivo Tavares Studio
Please Share, organização do ciclo de Roberto Cremascoli, sessão com moderação de João Belo Rodeia e participação de Guilherme Wisnik, Joseph Grima e Pippo Ciorra © Ivo Tavares Studio

 

 

Curadoria e edição de arquitectura

 

Destaca-se, no programa inaugural, o ciclo de conferências intitulado Please Share, organizado pelo arquitecto Roberto Cremascoli, que pretendeu discutir as influências de diferentes disciplinas na área da Arquitectura e suas possíveis contaminações. 

 

Dividido em diferentes "actos", na ocasião da abertura da CdA os temas em questão foram a curadoria e a edição, refletindo a crescente importância das exposições e das publicações no campo. Segundo o organizador, "curadores e editores têm sido nos últimos anos os grandes pensadores do papel do arquitecto na sociedade"9. Para o primeiro encontro, dedicado à curadoria de arquitectura, foram convidados para a discussão Joseph Grima, Pippo Ciorra, Delfim Sardo e Guilherme Wisnik, com moderação de João Belo Rodeia.

 

Partilho aqui algumas questões que me surgiram na ocasião e que podem servir como ponto de partida para pensar a curadoria de arquitectura em geral e, em particular, no futuro da Casa da Arquitectura. 

 

Pippo Ciorra, curador do MAXXI Foundation (Museu Nacional de Arte do século XXI) em Roma, trouxe à tona uma questão recorrente: o incómodo actual em torno do rótulo — ou da aura — da profissão do curador. Até mesmo o curador mais famoso dos últimos tempos, o star-curator suíço Hans-Ulrich Obrist, prefere assumir-se enquanto junction-maker ao invés de curador. Qual seria a razão para tal incómodo generalizado? É evidente que o título está cada dia mais desgastado, especialmente dentro do campo cultural, e talvez a aura de poder que se tem atribuído à profissão possa causar certo desconforto. Entretanto, é importante pensar se, fora do restrito mundo dos museus, a profissão é realmente (re)conhecida, e, além disso, mais necessário do que inventar outros nomes à função, talvez seja mais eficaz que os próprios curadores trabalhem na desmistificação da profissão. É interessante que, no momento inaugural da CdA, seja problematizado o papel do curador; entretanto, é preciso encontrar vias de discussão frutíferas.

 

Joseph Grima trouxe para o debate, ainda que superficialmente, o usual domínio masculino na cena da arquitectura. Ao falar sobre a sua participação como co-director da primeira Bienal de Arquitectura de Chicago, Grima constatou o problema ao relatar a pesquisa feita para a primeira edição da Bienal, que tinha como referência o encontro The State of The Art of Architecture, ocorrido em 1977, evento dominado por arquitectos homens de meia idade. Constata-se que, 40 anos depois, a programação de conferências sofre do mesmo problema. Espera-se que a agenda de exposições e actividades da Casa — além da constituição do seu acervo — não poupe esforços em discutir e reavaliar o trabalho de arquitectas mulheres, uma problemática tantas vezes deixada de lado.

 

Guilherme Wisnik, curador da Bienal de Arquitectura de São Paulo em 2013, falou sobre a sua experiência profissional e trouxe à discussão a questão da relevância de uma bienal de arquitectura. Num contexto onde as bienais e as exposições de grande porte em geral, descendentes da Exposições Universais do século XIX, não figuram mais como principais veículos de apresentação e actualização de informações, qual seria a actual função deste formato expositivo? Comunicar as novidades aos profissionais do campo ou promover a aproximação com o grande público? Apresentar projectos ou promover práticas experimentais?

 

Indo mais além, vale reformular a pergunta para "qual a função da exposição de arquitectura?" As motivações e os meios utilizados na actual curadoria de arquitectura são tão variados quanto heterogéneos, e a questão seminal da representação da disciplina em contexto expositivo vem sendo muito mais explorada no campo teórico do que no prático. Parece unânime a ideia de que a arquitectura tem tentado afastar-se do seu caráter físico, objectual e tectónico, indo em direcção a um conjunto de questões de carácter teórico, subjectivo e sociopolítico. Os envolvidos com a difusão da disciplina concordam com a necessidade de expandir, saindo da bolha profissional e assumindo uma posição de diálogo, de troca, de construção do saber. A própria iniciativa da Casa da Arquitectura e as conferências em questão são provas deste caminho que vem sendo trilhado. Ainda assim, muitas das actuais exposições de arquitectura — ou pelo menos aquelas que têm vindo a acontecer em Portugal — continuam seguindo o formato do livro exposto tridimensionalmente, afogando o visitante num sem-fim de textos e imagens explicativas. Desconsiderando a fragilidade de algumas "exposições-livro", a curadoria de arquitectura em geral continua a pautar-se pelo formato expositivo tradicional — aquele que, no campo da arte, tem sido questionado, experimentado e revisto há, pelo menos, quatro décadas. 

 

É evidente que as exposições de arquitectura têm muito que comunicar. Mas se o que se busca é a expansão do público e o diálogo para além do campo profissional, por que muitas exposições continuam sendo monólogos? Existe, de facto, vontade e aptidão para o diálogo fora do campo disciplinar e da esfera dos arquitectos? Das diversas iniciativas apresentadas nesta conferência, vimos projectos expositivos dedicados à produção de jovens arquitectos, conversas e intervenções arquitectónicas à beira da praia, mesas-redondas em países longínquos, uma panóplia de actividades buscando ocupar a cidade… Mas estas iniciativas procuram destacar-se como novidades na museologia da arquitectura ou estão, de facto, dispostas a encontrar respostas díspares, incomuns, dissidentes e inconvenientes? Em que medida as exposições de arquitectura se preocupam com o que o público lê, pensa e descobre numa visita? A curadoria de arquitectura está aberta ao feedback do público? E, se está, como faz isso? Como é que os museus, as bienais e as exposições de arquitectura medem o seu impacto com o público? 

 

A conferência em questão é um bom ponto de partida para pensarmos essas problemáticas. No momento em que a plateia foi convidada a participar, a discussão continuou a ser uma conversa entre pares, confinada à discussão de conceitos arquitectónicos que pouco alcançam o público em geral. Não que o tema do debate não fosse pertinente (discutia-se a autonomia da arquitectura), mas supondo que a curadoria busca não apenas reflectir sobre a arquitectura mas também comunicá-la, a conferência não propôs uma expansão do diálogo. Perdeu-se a oportunidade, num momento tão importante para a curadoria de arquitectura em Portugal e, claro, para a própria Casa da Arquitectura, de convidar o público a fazer parte dos rumos do campo e da instituição. Fica aqui o desejo de ver como a Casa vai lidar com os seus futuros visitantes, hóspedes e moradores.◊